A opinião de ...

A Sociedade XIII – Honra e teimosia

A miséria generalizada, o frio, a fome, o isolamento, a falta de horizontes, a impotência perante o destino e, apesar de tudo, espero fazer suscitar ainda algumas saudades, de tudo aquilo que os ligou aos demais. Esquece-se o pior, recorda-se o melhor. Como seria possível esquecer a generosidade daqueles que ajudavam quem estava pior, que mantinha um lume aceso para garotos com frio, ou cozia mais umas batatas para quem estava com fome. Que ajudava na apanha da azeitona, do trigo na ceifa do feno ou na matança do porco? Daqueles que se entreajudavam no limite da pobreza? Ou na felicidade das festas em que se abriam as arcas, saía o presunto e enchidos das suas guaridas, na expectativa da fogueira de Natal ou do almoço de Páscoa. Na vinda dos parentes das aldeias vizinhas para a ceia do Natal, nas brincadeiras das crianças ainda inconscientes. Não há pobreza que não tenha intervalo ou fim.
Após umas semanas de desalento, nestas crónicas, chega a altura de ver um lado positivo. Um lado talvez pequeno, difícil de ver, escondido entre a lenha por arder, atrás das paredes das casas, guardado nas talhas de azeite, nas camisolas tricotadas, nas lojas da batata e na vontade férrea de não desistir. Mas ainda assim muito positivo. Um misto de pobreza e carácter, de miséria e honra. O fado devia ser transmontano pois, se aqui pouco se cantava, mais se vivia.
A solidariedade imensa destas populações garantia uma coesão social notável, uma colaboração que só ela permitiu a sobrevivência de muitos. Que fez esquecer o possível despertar de ódios, de desagregação e de revolva. Uma solidariedade imensa, cimentada na ausência quase total dos poderes centrais. Recordo exemplos, vividos e contados, de grande generosidade que não cabe aqui contar.
Estranhamente, o parcelamento sistemático de terra, que não estica, que levou à ruptura da dimensão mínima necessária para a agricultura familiar, não conduziu à agricultura conjunta, como noutras latitudes. A posse da terra era, e é, um conceito feroz, como a posse da água. A tentativa da mudança dos marcos, ou do desvio da água, era ofensa, às vezes, punida com a morte. Todos conhecem casos.
É assim a mentalidade transmontana. Contraditória, confiante mas atenta, altaneira – o lavrador transmontano era obstinado, não tinha uma dívida! Não pedia emprestado aos bancos (também não os havia) ou a terceiros, tinha a palavra do aperto de mão. Trocava serviços de ceifa de apanha da azeitona, de arranque da batata, da lavoura com a burra ou o macho, o lagar do vinho, o forno, o alambique. O pastor estrumava o olival e o vizinho dava-lhe a folha dos freixos e a lenha da esgalha. Permitia-se a ripa dos olmos, o feixe. Mas era absolutamente rígido quando era ultrapassado, no seu conceito de dever e honra. E dívidas não havia.
Quantos e quantos casos conheço do chamado Portugal Velho, que mereciam medalhas, que lhes não estão reservadas.
Bem haja tal gente, tão difícil de entender!
“Na terça” vens para mim, era o contrato que nenhum advogado conseguiria quebrar.

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