A opinião de ...

A ciência é importante demais para ser entregue aos cientistas

“A guerra é uma coisa demasiado importante para ser confiada aos militares”.

A frase é de Georges Clemenceau, um político francês que foi primeiro-ministro por duas vezes e, em particular, no final da I Grande Guerra.

Há cem anos, a ideia era uma originalidade, mas foi repetida vezes sem conta até se tornar uma evidência. Hoje é algo consensual e o conceito foi-se alargando a quase todas as áreas de actividade humana. Hoje aceitamos que a política é uma coisa demasiado importante para ser confiada aos políticos, que a economia não pode ser entregue aos economistas, que a educação não se pode deixar nas mãos dos professores e por aí fora.

Há sólidas razões de ordem política e filosófica que justificam esta atitude. Numa sociedade democrática, onde a dignidade e o valor de todos os cidadãos é o mesmo, é evidente que não se pode deixar nas mãos de um grupo (por grande que seja e por competente que pareça) as decisões sobre matérias que influenciam de forma determinante a vida das pessoas e o seu futuro.

Hoje estamos todos de acordo que seria idiota entregar a um conselho de generais a decisão de declarar guerra ou não a outro país. Até porque os generais serão especialistas em fazer guerra, mas a decisão de desencadear uma guerra e a possibilidade de eventualmente a ganhar depende de muitos outros factores que nada têm a ver com a guerra e influencia todos os sectores da vida de forma drástica.

Isto significa que devemos envolver, em qualquer decisão no domínio da guerra, todos esses factores e sectores que determinam e são, por sua vez, determinados pela decisão. Ou seja: uma decisão política no campo da guerra (para continuar a usar o mesmo exemplo) ou no campo da educação ou da saúde deve, não apenas por razões filosóficas, mas por razões técnicas, por razões de eficácia, envolver a sociedade no seu todo. É isso que acontece nas sociedades democráticas, que não se limitam a organizar eleições, mas vivem do debate permanente, no seu seio, de todas as questões que têm impacto na sua vida. É por isso que todos discutimos (e bem) a educação, a habitação, a rede de estradas e os impostos sem sermos professores, nem arquitectos, nem camionistas, nem fiscalistas. Precisamos da participação desses especialistas? Sem dúvida, mas depois de os ouvirmos, de conhecermos os dados e as diferentes razões dos diferentes pontos de vista, todos nos sentimos capazes e obrigados a participar na discussão.

Mas… e a ciência? Será que a ciência e a tecnologia são matérias demasiado técnicas para serem discutidas pela sociedade? Não devemos deixar a ciência e a tecnologia nas mãos dos cientistas? Nas mãos dos físicos, dos sociólogos, dos botânicos e engenheiros?

Uma das grandes revoluções das últimas décadas no domínio da ciência foi a resposta a esta pergunta. E a resposta é um rotundo “não”. Não podemos deixar nas mãos dos especialistas o debate social sobre a ciência, as suas condições de produção, os seus sistemas de validação e as suas utilizações.
Durante muitos anos, o domínio da Comunicação da Ciência foi quase sobreponível ao da educação científica. As pessoas que se dedicavam a esta actividade consideravam que o seu dever era apenas informar os cidadãos leigos sobre a actividade da ciência, de forma unidireccional. Nas últimas décadas, a grande preocupação dos profissionais de Comunicação da Ciência passou a ser como envolver os cidadãos no debate sobre a ciência e a tecnologia. É evidente que esta preocupação não pode ser satisfeita sem uma forte aposta na educação científica, mas vai muito para além disso. Não existe nesta atitude nenhuma menorização do papel dos especialistas, dos cientistas e dos engenheiros, que é insubstituível, e cujo conhecimento é fundamental para alimentar o debate. Mas o debate daquilo que a ciência faz e pode fazer, do que devem ser os seus objectivos sociais, deve ser um debate de toda a sociedade. É isso que vai estar em debate no Congresso de Comunicação de Ciência que a associação SciComPt realiza em Bragança no próximo mês de Maio.

 

José Vítor Malheiros

Edição
3926

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