A opinião de ...

No rescaldo das comemorações

1. Do rescaldo das comemorações dos 40 anos do 25 de Abril, da tão celebrada revolução da liberdade representada por uma flor, em vez de respirarmos a brisa perfumada de uma alegria pacífica, comummente partilhada, pelo contrário, o que dominou e ficou no ar foi um clima de divisão crítica e hostil, entre uns que se consideram os herdeiros imaculados dos ideias de Abril (que são obviamente imaginários, tirante o que sucedeu, como dito e feito, na revolução), e os outros, supostamente inimigos ou traidores. E esta divisão assim ideológica foi apropriada como oposição política. Não foi, portanto, e nesta medida, uma comemoração fraterna da liberdade; foi uma campanha política com fins partidários. O cúmulo foi, por parte de quem se julga notário da democracia, uma patética ameaça verbal revolucionária contra órgãos de soberania, que funcionam regularmente segundo a Constituição, só porque não seguem uma linha de governo e não outra.
2. Não há dúvida, a liberdade e a democracia também são apropriadas por alguns contra outros: tal como, antigamente em ditadura, o valor e o ideal da «ordem» justificavam uma auto-apropriação da superioridade política de uma linha de governo, também agora, em democracia, há pseudo-democratas que se auto-apropriam da revolução da liberdade para proclamar contra os outros a sua opção de governo.
3. Ora, a bem dizer, a fonte da liberdade é a Fonte que criou o homem livre e não cobra nada por isso — antes pelo contrário. A nós, homens, o que nos é pedido é que não aprisionemos a liberdade, uns dos outros. E isto não passa de um dever nosso, cujo cumprimento por definição não merece prémio. Os pseudo-libertadores humanos apenas cumprem a justiça, nada lhes é devido em troca.
4. Razão pela qual, Vasco Pulido Valente disse muito bem que nada devemos a quem nos proporcionou a liberdade política em 1974. Se devêssemos, e como alguns querem por um prazo eterno, então teríamos ficado prisioneiros dessa dívida.
5. A democracia (que é o mesmo que viver em justa e ordeira liberdade) é um belo caminho. Mas inseguro, sempre ladeado de escarpas escorregadias e com alguns inesperados charcos. Percorrido em multidão que se entreajuda, mas também se empurra. Deve-se por isso andar acordado, não a dormir; cada um por seu pé; não levado ao colo por outros, em cómoda sonolência.
6. Se alguém julga que pode dormir descansado e descuidado porque vivemos em democracia, está muito enganado e é imprevidente. A democracia necessita de constante defesa, porque é constantemente atacada.
7. Os dois piores inimigos da democracia são: a demagogia e o jacobinismo. A demagogia é a corrupção do povo: quando se promete tudo a todos e sem custos, e o povo aceita. O jacobinismo é a corrupção de um partido que depois corrompe o Estado: quando, alegadamente em nome do bem comum ou do «interesse geral», se monopoliza a virtude e o discernimento político num centralismo estatal que ataca o pluralismo civil.
8. Infelizmente, as duas maiores doenças da democracia, a demagogia e o jacobinismo, infetam-se uma à outra. O jacobinismo de Estado é demagógico, porque sabe que quanto maior for a demagogia, maior é a necessidade da providência do Estado central. E a demagogia sabe que só pode satisfazer-se à custa de um Estado providência autoritário. É a fábula do predador sedentário protector.

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