A opinião de ...

Homem-irmão

«Senhor, ensina-nos a rezar» (Lc 11, 1). Neste pedido os discípulos apontam para a dimensão protológica da vida espiritual e da existência humana. Jesus faz experiência inaudita de nos revelar Deus como Pai. De facto, na história da salvação só Jesus foi capaz de dar esta novidade aos homens e ao mundo. Nunca outro profeta ou mandatário de Deus o tinha revelado. É curioso que, ao contrário do kerigma da Igreja – que anuncia a paixão, morte e ressurreição de Jesus e que é o Messias e Salvador esperado e longamente desejado –, o kerigma de Jesus é o anúncio do Reino e do Pai.
Eis a novidade maior: temos Pai! É muito importante conhecer a Deus como Pai. Isto porque a raiz de ser filho procede a de ser pai, e como tal antecipa a vivência do filho como dom. O filho é acolhido pelo pai porque é recebido como dom. Gerado no seio da mãe, o filho é dado ao pai como um dom e, por isso, a atitude do pai só pode ser de acolhimento, porque aquele que recebe nos seus braços é e será um tesouro que o enamorará eternamente e não deixará nunca de o amar. E nesta filiação [fundante] sabemos que nunca estaremos sós, que seremos radicalmente esperados, desejados e amados.
Assistimos a uma sociedade que vive de alguma orfandade: é uma sociedade sem um ‘pai-comum’. Na verdade, uma sociedade sem um “pai comum” faz de nós [necessariamente] órfãos. Interessante que hoje proliferam – quase como cogumelos – pais de muitas coisas: pais da saúde, pais da economia, pais disto e daquilo. No entanto, nunca como hoje nos sentimos tão órfãos, tão sós e tão esquecidos. Na verdade, sem pai não há fraternidade (comunidade de irmãos) e sem fraternidade não há identidade. Gera-se, portanto, o vazio existencial que muitos filósofos do tempo hodierno colocam à colação e à reflexão.
Então, porque não uma mudança de paradigma, uma mudança estrutural, uma mudança radical? Será que interessa a alguém (ou a algum grupo mais ou menos definido e com agendas de múltiplos interesses) que o mundo se sinta órfão a fim de aliciar a pessoa a que viva num processo descontrolado em ter coisas, de uma necessidade falsa de possuir e de dominar, de um materialismo doentio, de um modo de vida competitivo, violento e opressor, de uma economia que asfixia os mais frágeis e desfavorecidos, de uma cultura hedonista e narcisita que olha a pessoa como objecto de fácil manipulação e de desrespeito pela sua inegável dignidade, de uma ditadura do relativismo que aniquila a celebração dos valores maiores da humanidade, de uma comunidade sem identidade, sem futuro e sem sonhos?
Valeria (e muito) a pena reflectir seriamente e de forma concertada sobre isto…

Edição
3751

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