A opinião de ...

De novo no exílio

Faleceu no dia 14 de março o cardeal belga Godfried Danneels, arcebispo emérito de Mechlen-Bruxelas. Talvez não seja muito conhecido na nossa região. Eu tive a sorte de ler, já há uns anos, um texto dele sobre a Eucaristia. A partir daí com facilidade o recordava nos domingos das nossas aldeias, devido ao som dos sinos. Danneels dizia que a Missa começa com o toque do sino. Estabelecia assim uma comparação entre o som que se propaga do campanário com a voz de Deus que convida para a Eucaristia. Nesta conexão deixa claro que a Missa dominical não é algo que eu preparo para os outros ou os outros para mim, mas é Deus quem a prepara para todos e é Ele quem convida para essa Mesa. Para além disso, se Deus chama por meio dum sino quer dizer que comunica para além da Sua Palavra e os Seus Sacramentos. Deus fala também, ainda que com uma intensidade diversa, pelos acontecimentos. Mesmo a partir das histórias mais ruins, fala para as reinterpretar e nos resgatar.
Por estes dias encontrei um comentário do mesmo Danneels à realidade eclesial e diz o seguinte: «em muitos países, a Igreja torna-se minoritária e pobre de pessoas, de meios financeiros, de poder e de prestígio. Talvez Deus nos conduza a uma espécie de novo ‘exílio babilónico’ para nos ensinar a ser mais humildes e a viver a partir da doutrina da omnipotência da graça». Fala disto em 1999. Porém, podia tê-lo dito há quinze dias atrás. E não é por ter sido o início da quaresma. Podia tê-lo dito há quinze dias porque o rosto da Igreja volta a apresentar-se manchado. Refiro-me à perda de prestígio causada pelos abusos de poder, de consciência e sexuais, e pelo inadvertido encobrimento de violações tão abomináveis. É uma realidade desoladora para todos os que amam a Igreja e conhecem a razão da sua existência que é o anúncio de Cristo Ressuscitado inclusive em tempo penitencial. Há, portanto, seguindo o pensamento de Danneels, que aproveitar esta humilhação para crescer na humildade, para pendurar os instrumentos musicais nos salgueiros à espera que a omnipotência da graça restitua o canto. Será Deus a fazer-nos sair deste exílio, a todos. Só Ele o consegue. Só Ele pode reconstruir as vidas destroçadas por este flagelo.
Sem dúvida que esta quaresma se afigura como um particular tempo de exílio, como um tempo penitencial reforçado. O papa Francisco, no passado mês de agosto, convidava às práticas quaresmais da oração e do jejum para agilizar em cada um a cultura do cuidado. Tanto a oração como o jejum ajudam a estar vigilantes e a ser proactivos, o que é fundamental para os cristãos. Muito do trabalho da denúncia tem sido apanágio da comunicação social, que criou neste contexto uma nova cultura. Graça à mediatização destes casos, muita dor teve a coragem de sair do esconderijo do silêncio. Por isso, no discurso de Natal à Cúria romana, o papa agradece aos operadores dos mass media que, honestos e objetivos, procuraram desmascarar os lobos e dar voz às vítimas.
Há um mês atrás decorria no Vaticano o encontro sobre a Proteção dos Menores na Igreja. Um momento de esperança não só para a comunidade eclesial mas para toda a sociedade. Por aqui se começa. É por meio da partilha de boas práticas que se progride na luta contra os abusos e no respeito pela dignidade de toda a pessoa humana.

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