A opinião de ...

A rebelião contra o sofrimento

No final do mês passado, tive a oportunidade de me reunir com um grupo de estudos que tinha como interesse comum refletir sobre a seguinte pergunta: “À medida que a vida passa, cresce em ti a felicidade ou o sofrimento?”1
E se essa era a pergunta, a atitude que orientava a procura da resposta era a de saltar por cima do sofrimento, para que pudesse crescer a vida em cada um e não o abismo ou a sombra.
Na verdade, como adverte o autor e obra citados, “não há paixão, nem ideia, nem ato humano que se desligue do abismo. Portanto, tratemos do único que merece ser tratado: o abismo e aquilo que o ultrapassa”.
Com essa disposição, as conversas giraram em torno das aspirações mais elevadas, aquelas que traduzem significados profundos, bem como sobre a necessidade de alinhar os pensamentos, as emoções e as ações com aquelas.
Nesse sentido, também se falou da conveniência de aprender a distinguir essas aspirações das meras compensações, ou fantasias compensatórias, como podem ser o prestígio, o sexo e o dinheiro, que cumprem a função de descarregar tensões e climas mentais, mas que não passam de sentidos meramente provisórios, deixando pela frente o vazio existencial.
Contudo, como poderá o ser humano vencer a sua sombra? Ou dito de outra maneira, como poderá o ser humano aprender a integrar os impulsos e necessidades do seu corpo com a procura de transcendência que o inquieta?
De facto, talvez por influência cultural greco-romana, operam na nossa sociedade dois modelos, um apolíneo (inspirado no deus Apolo), racional e virtuoso, e outro dionisíaco (inspirado no deus Dionísio), instintivo e prazenteiro, que conduzem a posturas na vida diferenciadas, mas aparentemente irreconciliáveis entre si.
Com o advento do cristianismo, o sacrifício foi elevado ao altar da santidade e, nessa medida, o sofrimento passou a ser aceite com resignação como via de salvação das almas.
Com a passagem do tempo e a influência do Renascimento, primeiro, e do Iluminismo, depois, essa conceção foi-se atenuando, alterando a relação do ser humano com o mundo quotidiano e dando lugar à expressão do desejo de felicidade individual na vida terrena, a que os ideários políticos novecentistas procuraram dar resposta, moldando a sociedade, mas dessacralizando a existência.
Mais recentemente, a progressiva mundialização, com a interpenetração das diferentes culturas, acabou por mostrar paradigmas diferentes, ajudando a criar uma síntese que procura conciliar de um modo novo esses impulsos vitais, embora a dialética irrompa ainda a cada passo, como os radicais religiosos nos fazem recordar.
Hoje, apesar do contributo da ciência e da justiça social na mitigação da dor, o sofrimento mental continua a ensombrar a existência humana, deixando a descoberto o sem-sentido em que a mesma se desenvolve.
Assim sendo, talvez o sofrimento seja um sinal, um aviso da contradição em que incorre a nossa vida, que só poderá apagar-se na medida em que se descubra e fortaleça um sentido válido e coerente para a existência, que não se desgaste conjunturalmente.
Se assim for, vale a pena prestar atenção às centelhas de entendimento que, por vezes, irrompem no quotidiano e nos mostram um significado e uma direção transcendentes, porque nelas está a chave para superar o sofrimento.
É graças ao nosso corpo e à intencionalidade da nossa consciência que podemos plasmar no mundo essas intuições de outra realidade, pelo que não se trata de encontrar uma oposição ou forçar uma luta entre corpo e mente (ou espírito), mas sim de alinhar um e outra com o propósito que se esconde e, às vezes, se revela no nosso interior.

1. cfr. Silo. Humanizar a Terra. A Paisagem Interna, Cap. I. www.silo.net

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