A opinião de ...

Somos todos estrangeiros

Quem se apresenta à sociedade que pretende representar, ao mais alto nível, como ungido de Deus para moralizar o país deveria conhecer, em todas as suas dimensões o que reza a história judaico-cristã, marca de água da civilização ocidental. Os povos bíblicos foram, por vontade divina, migrantes. Foi por vontade de Deus, manifestada no Médio Oriente africano, na Mesopotâmia, que Adão recebeu a incumbência, transmitida aos seus descendentes, de povoar e ocupar todo o mundo, tal como aconteceu com Noé depois do dilúvio destruidor. Foi para seguir os desígnios divinos que os seguidores de Moisés foram enviados para a Palestina, vindos do Egito para onde tinham sido, igualmente, conduzidos, algumas gerações antes. A própria religião que, para o bem e para o mal, marca a nossa civilização e que alguns seguidores do “consagrado” líder apresentam como identificadora e caracterizadora de uma suposta superioridade rácica, não chegou à nossa terra vinda do centro nem do norte europeu. Foi enviada para os quatro cantos do mundo conhecido por Jesus Cristo a partir da oriental Jerusalém. No mesmíssimo local onde nasceram as crenças religiosas que, segundo os mesmos, ameaçam a nossa vida, a nossa cultura, a nossa felicidade, em suma a nossa genuína e indeclinável identidade.
Aqueles que protestam para o risco insanável e lesa pátria de ver a “descaracterização” intolerável dos típicos e característicos bairros al-facinhas de Al-fama e da Mouraria onde, pasme-se, se vêm agora, com frequência, seguidores de ritos orientais, deveriam, antes de mais, questionar-se sobre a natureza e origem dos nomes pelos quais os tais quarteirões são conhecidos.
Mas se, porventura, entre essa turba de agitadores existir alguém que privilegie a evidência científica não pode ignorar nem desvalorizar que o “homo sapiens”, do qual descendemos todos, veio do continente africano para subjugar o “homo neanderthalensis”, esse sim, natural autóctone destas paragens.
E quem reclama contra a aculturação forçada (que, segundo eles, nos ameaça nas frágeis barcaças que atravessam o Mediterrâneo) deveriam começar por renegar a parte da história lusitana que, passando além da Taprobana, foram impor o lusitano modo de vida, à força da lança e da espada para as negras terras angolanas e, principalmente, nas avermelhadas paragens de Vera Cruz.
Locais que, depois de “aculturados” e “ocidentalizados” continuaram a ser destino almejado por quantos queriam fugir à pobreza, anos antes de irem partilhar com os seguidores de Maomé, os “bidonvilles” gauleses e as camaratas das minas germânicas de carvão.
Percorramos o espaço e o tempo e seguindo critério, mais ou menos rígido, encontraremos facilmente parente, amigo, conhecido que, só ou com a família, tenha ocupado um lugar e partilhado uma comunidade diferente da nativa. Nós próprios, cada um de nós, provavelmente achar-se-á nessa mesma condição. Pouco errarei se, genericamente, considerar que todos nós somos, de alguma forma, migrantes. Com “e” ou com “i”. Em boa verdade, com os dois pois a diferença entre emigrante e imigrante está naqueles que nos olham e não na condição de migrador.

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