A opinião de ...

O Sr. Ricardo

Através deste jornal soube da morte do Sr. Ricardo. Estava em casa, fui rever a fotografia onde apareço gordinho, franja, camisola, calção, meias até ao joelho e botas faiscantes. Tinha três anos. No canto do documento – Ricardo fotógrafo – em riscante letra cursiva. Na altura de fazer o exame de admissão voltei a ser retratado por ele, na altura tinha o estúdio num prédio da Rua Direita, depois mudou-se para a Praça da Sé. A sucessão dos dias levou-me a algum convívio com o Sr. Ricardo antes de entrar no mundo da diáspora. Jogávamos o sintético no Clube, sempre bem disposto, amigo de contar um episódio, as suas qualidades de arguto observador ressaltavam levando os impetuosos ou tremendistas ao exaspero porque lhes cortava as jogadas do estardilho. Acostumei-me a ouvi-lo enquanto ele observava e comentava o vaivém na Praça, agudo, certeiro, tinha o condão de antecipar o fim de uma qualquer história que tivesse tido eco ou vislumbrasse. Sempre que voltava à cidade, via-o, normalmente, devido a comprar jornais no quiosque vizinho. Cumprimentava-me como se tivéssemos estado juntos no dia anterior, a troca de opiniões animada de imediato proporcionava-me alegria, no mais ficava com a sensação de a profissão lhe ter dado a virtude de acumular referências cuja matriz era a chapa. Ele registou pessoas, actos e evoluções ao longo de dezenas de anos a darem-lhe lugar na história recente da cidade. A Susan Sontag gostaria de ter falado com ele, a célebre autora de On Photography, seguramente, obrigava-o a revelar o segredo da expressividade que colocou em muitos registos. Não sei se os seus arquivos estão inventariados e classificados, desconheço se a denominada massa crítica da cidade alguma vez se interessou pela sua obra, se calhar nunca recebeu a homenagem que bem merece e nunca foi alvo da exposição reveladora do seu talento. Goste-se ou não, ele fotografou tudo o que lhe deu na real gana, a concorrência quando surgiu não o atiçou, continuou a preferir o esmero à pressa, no global apanhava pormenores de notável sensibilidade e ferino humor. Se duvidam tentem ler as fotografias que tirou aos Presidentes da República, a dignitários de todos os talantes, se o fizeram encontrarão o pormenor que faz dele um artista e não mero registador de cenas. Uma fotografia tirada na Rua Marquês de Pombal a Américo Tomás envolto num remoinho de papelinhos é disso claro paradigma. Não deixem cair na obscuridade o Sr. Ricardo.
Armando Fernandes
PS. À atenção da Academia de Letras.

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3478

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