A opinião de ...

A quarentena

Após o primeiro dia de quarentena senti-me como se estivesse em Cabinda, no rectângulo aquartelado do Dinge, uma antiga serração de madeiras preciosas vindas da floresta do Mayombe, onde estávamos imersos na companhia de elefantes, gorilas, venenosas serpentes e os suga sangues a que apelidávamos de miruis dada a sua microscópica pequenez permitindo a este mosquito pousar sobre o nosso corpo e banquetear-se à vontade. A forçada quarentena, tal como agora, permitia saídas, as boas – raras idas à povoação do Dingae, Lândana e a Cabinda, as más, uma surtidas na floresta chamadas nomadizações, às quais fui poupado visto trabalhar (?) na «psico» e audição da rádio do MPLA.
Também no primeiro dia de estância forçada naquela demorada paragem senti o pulsar de envergar uma camisa-de-forças, apesar de larga, uma camisa a manietar-me os movimentos impedindo-me de ir para onde me apetecesse, apesar da cidade bragançana ser um resumido reino circular pautado pelo normativo salazarista. Depois, entendida a inevitabilidade de gastar o tempo refugiei-me na leitura, nos jogos de cartas – sueca, bisca lambia, king – a dinheiro dando ênfase à referida circularidade, hoje ganhas tu, amanhã ganho eu, isto porque os pescadores à linha (à espera do trio à cabeça) depressa eram escovados num universo de 110 homens, Companhia de Comando e Serviços, acrescida dos pelotões de apoio.
Agora, nestes tempos de cólera a quarentena apanha-me menos capaz fisicamente, mais intolerante no que respeita às faltas de carácter, menos receptivo a acreditar nos vendedores de ilusões, este menos é prova de irónica complacência ideológica dada a saraivada de quimeras ao alcance de todas as bolsas de racionalidade incluindo as estultas ditas ao modo dos vendedores de banha da cobra a trabalharem no mercado bragançano fronteiro ao Cine Teatro Camões. A quarentena apanha-me no Outono da vida, segundo os magos da saúde pública estou em situação de risco, ou seja: ou me ponho a pau ou vou desta para melhor ao virar da esquina, desculpem os leitores o histrionismo da frase. O assunto é sério, muito sério, mo entanto, a clausura encharcada em toda a baba a escorrer dos noticiários leva-me a cair na poça calcada repetidamente pelo Rocinante apesar do engenho de Dom Quixote. O Sancho preferia morcelas e linguiças, o leitor de romances de cavalaria queimou as meninges e cansou os olhos no tresler pelo adiantado da noite. E se a quarentena dura, dura ao modo de baterias? Se dura estou lixado, estamos tramados, dirá o leitor. É verdade, todavia lixado ou tramado não vislumbro grande hipótese de salvar a pele, os saltimbancos já deram sinais de salteadores (açambarcadores). Os destros de movimentos vão furar filas e listas de espera, irá prevalecer o desenrasca, o rapa, tira e deixa. O põe de ceder os compartilhar vai emigrar. Sim, estou a ser pessimista. O civismo? A boa educação? Ora, ora, dizia o almocreve de Carção: onde há lúcaros, não há escrúpalos. Leiam Diário da Guerra Civil. Leiam!
A quarentena também se entranha na sua versão negra. Espero bem que não, mas à cautela vou tomando algumas cautelas. E, vou ler pensamentos do Sr. De Montaigne.

Edição
3773

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