A opinião de ...

Falar com amigos

O título da crónica parece ser retirado do livro do Tonecas uma figura desaparecida da cena portuguesa que eu ouvia deleitado num programa do Rádio Clube Português. O Tonecas nesse tempo só falava com amigos, aos inimigos votava desdém e procurava nem lhe pisar a sombra, pisar só lhe pisava os calos ao modo dos dançantes nos bailes de Páscoa ao, propositadamente, encenarem e executarem vibrantes encontrões no rivais da mesma paixão, resvalando para a pancada quando os contentores arrumavam mal o vinho poderoso vindo de uvas da Ermida, Possacos ou São Pedro Velho.
Os vinhos provindos das vinhas destas terras a sul de Vinhais provocavam zunidos nas orelhas, riscos nas comissuras dos lábios e após o jogo dos paus vontade falar alto de forma os inimigos do coração fazerem saltar os botões das camisas domingueiras no auge de despiques ciumentos. Ora, nestes tempos de quarentena o jogo dos paus não passa de duma referência da meninice, tais néctares não transpõem o rio Douro, no que tange a bailes a rapaziada das bandas estilo banda de ouriço, partia-se-lhe a gaita tocavam num guiço, por isso ou em face do exposto e escondido só posso falar com os amigos. O leitor perguntará: como se estamos a viver em prisão domiciliária sem pulseira electrónica? Mais, o leitor acrescentará: a quarentena está Tonecas até porque o jogo em causa morreu de morte matada devido à falta de grandes executantes, o vinho ter uma produção exígua e bailar afastado cumpre a norma do distanciamento social. É verdade. Insisto na intenção de falar sem recurso à máquina de sons de frutos no esmagador ou copiados das canções ortodoxas, fundamentalistas.
O leitor dirá: outra vez a lengalenga a sugerir falas mudas impressas em papel escritas há séculos que só os donos de muito tempo lêem a fim de sustentarem argumentos de exaltação do passado, do amor à leitura e à reflexão. Se o leitor pensou desta forma pensou bem. Nesta crónica apenas refiro dois livros. O primeiro é um monumento literário da civilização ocidental que nesta conturbada época é fecundo lenitivo para entendermos e sabermos repelir os males do Mundo, o segundo testemunho das singularidades humanas de uma cidade atormentada pela peste.
Embora muito citado A Cidade de Deus obra-prima de Santo Agostinho por si só justificava que o Politécnico organizasse um curso de Humanidades pois não há técnica sem ciência e cultura e a obra em causa é referência fundamental da civilização antiga. Os alunos provenientes de dezenas de países ganhavam bons réditos educacionais se lessem e comentassem a referida obra. Todos nós, mesmo os doutorados em ciências naturais e aplicadas ficamos mais fortalecidos se o fizermos. A segunda leitura sugerida é a do Diário da Peste de Londres de Daniel Defoe. O diário foi escrito pelo seu tio.

Edição
3777

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