A opinião de ...

Ainda Sampaio

Corria o ano de 2014 quando decidi aventurar-me na escrita de um pequeno ensaio. O tema era a celebração dos 40 anos do 25 de abril, com apontamentos sobre o processo democrático e de integração europeia. Isto depois de um apelo em forma de concurso, promovido pela Antena 1/RTP, que vi publicitado algures na internet.
Lembro-me bem do momento em que me atirei à escrita - “atirar-me” é justamente o termo -, e lembro também a incredulidade que senti quando fui contactado por uma jornalista, que me comunicou ter sido um dos três vencedores.
Tudo isto parecerá bastante corriqueiro e autocentrado. Há um bom motivo. É que um dos júris do concurso, a par da maestrina Joana Carneiro, do general Ramalho Eanes e do professor Guilherme D’Oliveira Martins, era o nosso Presidente Sampaio.
A apresentação pública do ensaio decorreu na reitoria da Universidade de Lisboa, numa conversa entre o Presidente e este que aqui se assina. Assim, subitamente, um puto macedense à conversa com uma das figuras mais queridas do povo português. Foram tempos de enorme ansiedade, alegria e sentido de responsabilidade.
Chegado ao local, vi ao longe o Presidente. A sua presença ganhava uma mística, não sei se pela sua aparente debilidade física, se pelo seu olhar muito humano e humedecido. Ao meu aperto de mão hesitante e fraco, ele contrapôs uma mão forte e segura, sem qualquer sobranceria ou violência. Muito se pode dizer das pessoas pelo estudo do seu aperto de mão.
Depois do choque inicial, lá começámos o processo de desenrolar esse nó do desconhecimento, de nos aproximarmos, mesmo que circunstancialmente, para aquela hora de conversa.
A impressão mais profunda que Sampaio deixou em mim foi a de alguém que realmente queria ouvir o que tinham para lhe dizer. Naquela situação, por mero acaso, seria o que eu teria para dizer, mas era universal, visceral o seu sentido de escuta atenta. Depois de ouvir e assimilar, permitia-se uns segundos de silêncio, em que as palavras assentavam no espaço como a farinha depois da peneira, leves e luminosas. Era este o seu exame do mundo, do argumento, da razão.
Por fim, a voz. Forte e decidida, límpida e muito clara, no rastilho de uma vida inteira construída pela mão do pensamento e da oratória. Uma voz com um peso impossível. E essa voz dirigiu-se-me, perguntando, com uma candura traiçoeira: “Então e como é que o Pedro está a ver o mundo?”. Tremi, senti-me abismado, encurralado. Escolhi a sinceridade: “Bem, o mundo é uma coisa muito grande...”. Ele sorriu, disse que essa resposta estava certa e eu passei no exame.
O leitor desculpará estes meus apontamentos pessoais. É que nesta semana em que nos morreu um Presidente, por muitas vezes tenho recordado estes acontecimentos, as imagens, as ideias. E por uma vez sinto que talvez Portugal tenha sabido ser grato e homenageado completamente uma sua figura maior. Em todas as declarações públicas identifiquei uma tremenda franqueza, como se concluíssemos, derrotados, que aquele era um Homem imbatível.
Vergo-me perante a sua memória. Humildemente agradeço a simpatia, a cortesia, a generosidade de nos termos ouvido. Arrependo-me de não ter tentado nenhum contacto posterior, de não ter tido a astúcia de um e-mail ou de uma carta. Mas o Presidente entenderá: sou apenas um miúdo de uma terra lá longe, a tremer como varas verdes, e o mundo é uma coisa muito grande.

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3851

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