A opinião de ...

Sociedade e distopia II

O nosso desespero, face às circunstâncias que afetam a sociedade de hoje, é motivado pela existência quase permanente de guerras e suas misérias humanas, apenas parcialmente minoradas pela solidariedade de alguns estados, instituições e pessoas. Atrevo-me a lembrar o que escreveu o filósofo inglês Thomas More (séc. XVI) (guilhotinado por não concordar com Henrique VIII que se transformou no chefe da igreja anglicana) na obra “Utopia”, falando acerca de guerras com o seu interlocutor Rafael: «Consideremos o que se passa dia a dia em volta de nós. A causa principal da miséria pública é o número excessivo de nobres, ociosos zângãos que vivem à custa do suor e do trabalho de outrem, e que no cultivo das terras exploram os rendeiros até ao osso, para aumentarem os seus rendimentos». More acreditava que os homens se poderiam entender e, para tanto, imaginou a ilha da Utopia onde não havia lugar ao crime, à violência, à exploração, aos excessos de luxo. Um mundo perfeito!
No século XVIII, Rousseau, no seu “Contrato Social”, defendia, de forma diferente, mas sempre no sentido da harmonia, que o homem é naturalmente bom, e, sendo a sociedade regida pela política, pode contribuir para sua “degeneração”. Logo no primeiro capítulo, questionou as razões que levam homens a lançarem grilhetas noutros homens, se todos nascem livres e iguais. Não obstante os contextos epocais diferentes, mantêm-se as grilhetas da exploração do homem pelo homem. Voltaire, contemporâneo de Rousseau, criou uma obra interessante – “Cândido” – figura naturalmente otimista que se torna gradualmente pessimista, porquanto vê a corrupção, o autoritarismo e a exploração que grassava nas diversas instituições sociais, tornando-se um crítico.
Este grande autor do Iluminismo influenciou pensadores recentes, como Aldous Huxley no seu “Admirável Mundo Novo” e Orwell com o célebre “1984”. Cada um à sua maneira, previram um mundo cheio de escolhos e de maldade, o contrário do mundo da Utopia.
E hoje?
Desejamos um mundo melhor. Certo. Como o construir? O homem é naturalmente bom ou é mau à nascença? Não faço uma abordagem filosófica. Valho-me da literatura. Confrange-me a indiferença perante a guerra, a fome, a doença, a fuga. A distopia. Para Huxley, aquilo que seria um paraíso transforma-se num inferno, em que o homem fica escravizado pela organização social; para Orwell, o homem corre o risco de deixar de ter consciência do mundo em que vive, de se desumanizar.
Não temos um mundo perfeito, mas poderemos, ao menos, confiar em grandes estadistas competentes – se é que eles existem? Acreditemos que imperará a lucidez da diplomacia, evitando o apocalipse. Porém, triste, o Papa alertou: “Envergonhou-me ler que um grupo de Estados se comprometeu a gastar 2% do PIB na compra de armas em reação ao que está a suceder. É uma loucura!” Escreveu Pedro Norton na Visão, n.º 1516, de 24/3 a 39/3/2022: «O mínimo que podemos fazer é recusar [perante esta guerra na Ucrânia, e noutras!] suspender a nossa própria esperança». Não podemos acreditar no opróbrio predito pelo pensador brasileiro Loyola Brandão que escreveu “Desta Terra nada vai sobrar a não ser o vento que sopra sobre ela” (2018).

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