A opinião de ...

O silêncio de Eanes e o ruído dos outros

Nas últimas semanas, a propósito das comemorações do 50.º aniversário do 25 de Novembro, assisti a um fenómeno quase antropológico: um país cronicamente dividido em tudo que descobriu, de repente, um raro objecto de consenso nacional. Não foi a data, nem o seu significado que continuam a suscitar as indignações do costume. Foi a figura de Ramalho Eanes, celebrada com uma unanimidade que só surpreende quem nunca reparou no que distingue um estadista dos muitos ex-qualquer-coisa que insistem em revisitar o passado à procura de protagonismo.
Portugal teve vários Presidentes da República, mas só um conseguiu transformar a obscura condição de “ex” numa verdadeira instituição moral: Ramalho Eanes. E conseguiu-o de forma muito simples, quase primitiva: calando-se. Não deu lições, não reescreveu a História à sua maneira, não fez terapias públicas sobre agravos antigos, nem usou o prestígio do cargo para alimentar guerras domésticas. Em vez disso, desapareceu discretamente — e, por ironia, foi esse desaparecimento que o tornou presente.
Durante décadas, não comentou as eternas misérias paroquiais da política portuguesa. Não escreveu memórias para ajustar contas com o passado. Não sugeriu que o país teria sido melhor se tivesse seguido os seus conselhos — como tantos fazem, quase sempre sem que ninguém lhes tenha pedido opinião. E não recebeu ninguém em audiências privadas para preparar “retornos” imaginários. Eanes fez aquilo que o português médio considera impossível: percebeu que já não mandava. E comportou-se em conformidade.
O contraste com a fauna abundante de ex-presidentes de tudo — câmaras, juntas, distritais, concelhias, comissões, direções de banda filarmónica — é mais do que evidente. Há quem, depois de ter passado pela política, insista em regressar ao palco ano após ano, como se a História estivesse eternamente em dívida para com eles. Produzem textos indignados, recitam episódios de há vinte anos, atribuem culpas a todos excepto a si próprios e supõem que o Povo tem interesse em saber como, quando e porquê foram injustiçados. Confundem protagonismo com relevância. E confundem relevância com necessidade.
Eanes, não. Nunca tentou promover filhos, genros ou sucessores espirituais; nunca explorou contactos militares ou políticos para perpetuar influência; nunca reclamou honras post-mortem antecipadas; e quando lhe quiseram dar a farda de Marechal, recusou. Quando lhe ofereceram uma espada de honra, devolveu-a ao Presidente da República. O gesto foi de uma simplicidade devastadora: os símbolos do Estado não pertencem a quem os usa, mas ao Estado que os empresta.
É por isso que Eanes se tornou consensual: não por ter sido unanimemente admirado, mas por ter sabido sair de cena. A dignidade política mede-se, muitas vezes, pelo comportamento de quem já nada tem a ganhar — nem votos, nem cargos, nem influência. Uns conseguem fazê-lo com serenidade. Outros, infelizmente, passam o resto da vida agarrados a glórias imaginárias, a disputas internas e a narrativas pessoais que apenas eles se lembram.
Portugal não precisa de mais protagonistas do passado desesperados por reconhecimento. Precisa, isso sim, de mais silêncio útil. O de Eanes foi — e ainda é — um serviço público. Talvez alguns pudessem seguir-lhe o exemplo. Se não por grandeza, ao menos por pudor.

Edição
4066

Assinaturas MDB