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Doutrina Social da Igreja: a nova utopia? (2)

No artigo do passado dia 1 de Outubro (A Doutrina Social da Igreja: a Nova Utopia? (1), MB 3801, p. 16), apresentámos uma síntese da Doutrina Social da Igreja (DSI).
Elencámos os seus fundamentos, a saber: dignidade do ser humano, bem comum, propriedade comum dos bens, solidariedade, subsidiariedade e participação. Há princípios que se nos afiguram polémicos. A propriedade universal dos bens é um deles.
A DSI é o conjunto de valores que orientam a organização e a governação da sociedade humana no âmbito da doutrina geral do Cristianismo. Uma vez que esta Religião constituiu a primeira «globalização» do chamado Ocidente, alguns ou, mesmo, quase todos estes valores, são partilhados, no todo ou em parte, por outros projetos sociais e políticos, uns apenas em termos teóricos e outros em termos teórico-práticos. A Social-democracia só não comunga do princípio da propriedade comum dos meios de produção e subsistência e é um bom exemplo de coerência teórico-prática na realização da DSI.
Não há memória de posse comum dos bens nem ao nível das cidades-Estado nem ao nível dos Estados-Nação. Houve utopias várias de tentativa de colectivização da propriedade mas nenhuma teve sucesso.
Já a conciliação da propriedade privada com formas organizativas de associação para a defesa de interesses, para a entreajuda e para a proteção da saúde e social é longitudinal aos três mil anos de História escrita. Há registos de associações para defesa de interesses comuns: dos operários, no Egipto; de uma Caixa Comunal durante o Êxodo dos Judeus; das Collegia, no Império Romano. E, na Alta Idade Média (pós ano 1.000 DC), floresceram e diversificaram-se associações a partir das associações de companheiros, operários construtores das grandes catedrais 1.
No Século XIII, S. Tomás de Aquino e S. Francisco de Assis dão asas ao associativismo fomentando as misericórdias, os montes de piedade e as associações de irmãos (confrarias, irmandades e celeiros comuns). O comércio traria as guildas, as corporações, os montepios e as caixas económicas que envergonhariam os Estados que, só a partir de finais do Século XVI, começaram a tomar em mãos pequenos projectos de assistência social. E, já no Século XIX, as associações mutualistas e os sindicatos fecham o edifício associativista de inspiração cristã.
Foi notável a contribuição da DSI para a instituição destas organizações de entreajuda e proteção recíproca e para a passagem do Estado Assistencial dos séculos anteriores para o Estado Social do Século XX.
Foi ainda a inspiração cristã que conduziu Johannes Althussius 2 à criação do conceito e princípio da subsidiariedade para justificar o federalismo alemão dos séculos XVI e XVII e, em consequência, a utilização, pelo Estado, da propriedade privada para fins de assistência e de interesse público, em estado de calamidade ou de necessidade colectivas. Hoje, o princípio vai substituindo a retirada temporária da propriedade pelos impostos e pelas taxas.
A «utopia» da DSI foi a única que resistiu a todas as provas dos factos, ao racionalismo e ao cientismo. Mesmo que agnósticos, ateus, positivistas e outros digam que não.

(Endnotes)
1 Ferreira, Henrique C. (2020). Associação de Socorros Mútuos dos Artistas de Bragança – 150 anos de Mutualismo. Bragança: ASMAB (cortesia). Capítulo I.
2 Johannes Althussius (1614). Politica Methodice Digesta. Em Jean Touchard (1970). História das Ideias Políticas, Vol. III, pp. 67-72. Lisboa: Edições Europa-América. Ver ainda Henrique C. Ferreira (2007). Teoria Política, Educação e Participação dos Professores, pp. 149-218 (capítulo III, sobre o liberalismo). Lisboa: Editora Educa.

Edição
3803

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