A opinião de ...

O Feliciano

Era uma vez o Feliciano. Filho de um pequeno e perdido lugar nas arribas do alto Sabor, a casa onde nasceu era um buraco semiescuro – térreo, de telha-vã, de onde o fumo se escoava através de uma bueira que também deixava entrar: a chuva, o vento, a coada luz do dia e a neve.
Mal nasceu, o Feliciano foi embrulhado num avental esburacado de uma avó e posto num caixote de sabão, ao pé da lareira, ali ficando sozinho, durante largas horas, enquanto os pais vergavam ao peso do trabalho.
Alimentado a leite de cabra, papas de milho e rabos de sardinha, o Feliciano foi crescendo entre choros, rabugices, pontapés e lamentos; e assim crescendo, enquanto trabalhava, conseguiu concluir a instrução primária, à luz da candeia e do lampião, a assoprar o lume e a limpar as lágrimas por causa do fumo e de tanta tristeza.
De aspecto franzino e velada timidez, o Feliciano não passou despercebido ao casal Caldeira, o qual, de passagem por aquele lugar, se compadeceu do rapaz. Prometendo acolhê-lo como se fosse seu filho, acertou com os pais as necessárias diligências e levou-o consigo para a cidade.
Bem instalado, bem tratado e muito amado por quem o acolheu, o Feliciano cresceu, enrijou, aparou a barba cerrada, estabeleceu-se, casou e teve filhos.
Com uma habilidade inata para o negócio, aos trinta e cinco anos já era dono de empresas tão fortes que, um dia, resolveu ir à terra visitar o mausoléu dos pais e rezar por eles, a conversar com os amigos e rever lugares que tanta mágoa lhe causaram, mas de que nunca perdera a lembrança.
Senhor de uma imprevista, ingénua e impulsiva generosidade para com a sua terra, mandou arranjar a igreja e pintar o cemitério, financiando, além disso, uma estrada para a vila e a instalação de água canalizada e de electricidade em todas as casas.
Andava a gente muito admirada com tanta generosidade até que um dia, por sugestão de alguém, os responsáveis do lugar, depois de muito pensarem e depois de alguns debates, decidiram que, sendo o Feliciano filho da terra, não mais poderia abandoná-la.
Tendo chegado ao seu conhecimento, o Feliciano debalde tentou convencer os seus conterrâneos da má decisão que tomaram. Porém, e apesar de muito lutar, dali não mais conseguiu sair: perdeu a fortuna, perdeu a mulher, perdeu os filhos, perdeu os amigos, e perdeu a própria saúde.
A definhar de dia para dia, acabou por ver-se prostrado no miserável catre de um miserável casebre, sem ninguém que lhe chegasse um caldo!
E foi assim que, volvidos anos de privações, o Feliciano morreu, jazendo em campa rasa – incógnito para sempre!
Rememorando esta estória baseada num facto verídico, estória que construí a descansar na minha terra, à frescura da sombra de uma oliveira secular, enquanto ouvia o cantarolar do ribeiro e o gorjear do pintassilgo, não posso deixar de reflectir sobre as mais importantes decisões nela contidas para facilmente ser levado a concluir que, ao menos duas, marcaram o destino do Feliciano.
Até agora, e apesar de tantos anos passados, não consegui penetrar, tanto na mentalidade do Feliciano como na mentalidade dos decisores daquele lugar, os quais, por sua visível irresponsabilidade, acabaram por matar a galinha de ovos de ouro.

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