A opinião de ...

Uma Carpintaria no Cabeço

No passado dia 12 de agosto, no Cabeço da Senhora da Assunção foi apresentado o último livro do meu tio padre Joaquim Leite, “Na Carpintaria de José”. Baseando-se na recuperação de uma peça de teatro, feita e representada, há várias dezenas, no Seminário de S. José, em Bragança, agora revista e aumentada, o padre Leite acrescentou-lhe mais quatro unidades (capítulos) falando de quatro Josés bíblicos (José do Egito, José de Nazaré, José de Arimateia e José Caifás), da Sagrada Família (a bíblica e a de Barcelona) e fechando com melodias alusivas ao tema, uma delas da sua autoria.
Com a casa cheia (tanto quanto as regras ditadas pela DGS para o tempo de pandemia), a Câmara Municipal de Vila Flor, marcou presença demonstrando o seu apoio a mais esta iniciativa cultural. Desde há vários anos que o Município da Flor de Lis apoia, de forme criteriosa e inteligente a cultura e, especialmente, a literatura. Porque, ao contrário de outros, o Executivo Municipal sabe bem que uma das funções, um dos desígnios, uma das obrigações do poder local passa pela valorização do território, que, por sua vez, depende em absoluto da apreciação da gente que os habita e, nesta, é indispensável o reconhecimento enaltecido das tradições, pedra fundamental da cultura popular. Muito errados estão os que julgam cumprir tal função com a instalação de algumas peças de arte em rotundas e parques. Obviamente que a estatuária é importante de quem quer que se tenha notabilizado na região ou seja de lá originário ou com fortes ligações. É um dever enaltecer, adequadamente, as figuras gradas, os artistas consagrados, os vultos que se distinguiram de entre os demais e que ganharam relevo regional e/ou nacional. Igualmente se deve abrir as portas às novas formas artísticas sem se ficar, tacanhamente agarrado ao passado, numa palavra, promover e considerar as elites artísticas. Mas é um erro tremendo desconsiderar, não valorizar nem apoiar a literatura que recupera, realça e engrandece a tradição popular, dando-lhe, pela escrita, uma duração superior à dos mármores e metais, segundo Jorge Luís Borges. Aqui chegando, seria insensato não valorizar, devidamente, a tradição genuinamente religiosa, traduzida nos autos e que, nesta obra, o padre Leite, igualmente celebra e enaltece.
Joaquim da Assunção Leite, fiel ao seu ideário de décadas a que habituou os que lhe ouvem as homilias, traz-nos na peça teatral, de um ato e vinte e uma cenas, um Jesus adolescente, que, na carpintaria do Seu pai dialoga com amigos, vizinhos, clientes e até com uma cabra. O ambiente, os diálogos e as circunstâncias, viajam dois milénios e consubstanciam a realidade do Médio Oriente nazareno, numa das nossas aldeias do princípio do século passado, tão bem conhecida, por que vivida, pelo autor. A carpintaria milenar podia muito bem ser a de um outro qualquer José, da sua criação, o Bernardo ou o Cândido e o argumento é igualmente atualizado para os nossos tempos. A humanização é clara e marcante em todas as personagens desde a cabra Malhadinha, com “sentimentos” e “opiniões” até ao adolescente Jesus cujos traços de divindade apenas se Lhe adivinham na bondade e generosidade.

Edição
3847

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