A opinião de ...

Um livro honesto e corajoso. A afirmação de um retrato

Gosto de livros. Gosto de oferecer livros e gosto que mos ofereçam. Gosto que os meus amigos os publiquem e gosto que gostem, que tenham “proa”, nos livros que publicam. Assim escrevi eu aqui há dias. Hoje acrescento: gosto deles honestos, não necessariamente verdadeiros, mas honestos, escritos por homens ou mulheres com coluna, capazes de escrever o que pensam ainda que o que pensam não caiba nos códigos vigentes.
E gosto de quem procura escrever simples e, sobretudo, com clareza. Parece, aos olhos de alguns que ser ser-se profundo é ser-se obscuro, retorcido, impenetrável, autor de adjetivos rubicundos (este foi de propósito), com frases longas, a meio das quais não sabemos já donde vimos, para onde vamos nem a que propósito começamos o caminho em que nos encontramos. (E acho graça a quem, compondo poses de crítico polissémico, louva e aplaude, não vá alguém pensar que não é suficiente inteligente ou, pior, não vá alguém impontá-lo da confraria onde se produziu tão hermético tratado). Ah meu Deus, como é difícil escrever simples!
E, claro, gosto dos livros que, sendo honestos, se ocupam de amigos meus. É o caso de “Descolonização, um crime sem castigo”, da autoria de Luís Rodrigues. Na casa dos noventa anos, o autor dá conta do que viveu em Angola, mais concretamente a norte, em Malange, declarando-se “sobrevivente dessa hecatombe” que foi a descolonização. “Despojado e reduzido à escala zero, regressado a Portugal com mulher e três filhos” acolhe-se à terra de origem. Dedica-se à vinha, aos 43 anos, inicia uma segunda vida, chegando, “entretanto, a velho sem dar conta do tempo passar”. O livro de Luís Rodrigues é um “balanço final”, tecido de “memórias e testemunhos incómodos”, um livro honesto e corajoso, de alguém declaradamente sem pretensões a escritor. Também nele se fala e presta homenagem a um amigo nosso: Telmo Ferraz.
“Por alturas de 1963 – pode ler-se em “Descolonização, um crime sem castigo” – soube-se em Malange que no lugar de Culamuxito, a cerca de nove quilómetros da cidade, numa antiga fazenda conhecida por Lagoa da D. Chica” […] a Obra da Rua do Padre Américo ali iria instalar uma nova Casa do Gaiato”. O local resumia-se a um “caramanchão de floridas trepadeiras a rodear uma estreita porta de acesso a uma pequena casa em ruínas”. É então, escreve Luís Rodrigues, que aparece “na cidade um jovem Padre à volta dos trinta e cinco anos que irradiando uma bondosa e cativante presença, breve conquistou geral e enorme simpatia”. Num extraordinário fenómeno de solidariedade, Malange une-se a ele “e a Obra foi surgindo com a abnegação e dinamismo de um Homem extraordinário […] sempre a navegar num mar de dificuldades, desprovido de ambições pessoais, modesto e pobre de bens terrenos, dedicando toda a sua vida exclusivamente aos pobres e desprotegidos”. Luís Rodrigues não esquece a ação do autor de “O Lodo e as Estrelas” “na agreste e sacrificada vida dos operários da barragem do Picote em Portugal”, nem a sua passagem “pela barragem de Cambambe em Angola, depois de ter oferecido assistência e carinho à Colónia dos Leprosos de Dangeamenha”, terminando o seu testemunho grato pela felicidade de “em vida termos conhecido um verdadeiro Santo!”.
Quem conhece Telmo Ferraz ou quem leu, por exemplo, os livros “Uma vida, tantas vidas” e “O homem que do lodo fez estrelas” dirá que não há novidade neste testemunho. Posso até concordar, mas quem será insensível à unanimidade daquela afirmação? Não tenho dúvidas: há homens que têm encontro marcado com o futuro.
* (Universidade Católica Portuguesa, Escola das Artes)

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3835

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