A opinião de ...

Hungria e Portugal

Língua fino-úgrica, de matriz urálica, o húngaro não é fácil; mas, a pouco e pouco, podemos ganhar um espaço no coração de quase onze milhões de habitantes dentro das actuais fronteiras – cinco milhões no exterior −, sensíveis às atenções que lhes dispensam.

 

O ensino do Português na Universidade de Budapeste começou há 35 anos, animando à tradução de dezenas de títulos patentes em cartazes na exposição ainda visitável na Biblioteca Municipal de Bragança, acompanhados de 60 livros traduzidos entre nós. O património português sobre o Danúbio inaugura-se, todavia, com a primeira edição lisboeta do Comentário sobre o Pentateuco (1489), em hebraico, raro exemplar guardado na Biblioteca Nacional húngara. A par de acenos no campo da música, da pintura e da azulejaria, impõe-se a actividade económica, e, ultimamente, a imagem de um país de sol e praia, reduzido à sua dimensão pós-imperial – como a Hungria histórica se reduziu a um terço de grande país medieval, agora com superfície e população semelhantes –, cujos grandes descobridores são substituídos por nomes do futebol, que também disputam o lugar a Camões, Pessoa, Saramago e outros.  

 

Já em 1241, uma cantiga de João Soares Coelho repercute o perigo das invasões tártaras em solo convertido ao cristianismo desde o Natal do ano mil, com o rei santo Estêvão. Isabel de Aragão repetiu os milagres da tia-avó Santa Isabel da Hungria. O infante D. Pedro estende as suas partidas a território da Panónia (entre 1425 e 1428), sob ameaça turca. Vasta discussão tem gerado a origem húngara da Casa Real portuguesa, em que a cronística do séc. XVI apostou, antes e depois d’Os Lusíadas (III, 25, 28; VIII, 9), face à notícia de que o conde D. Henrique era húngaro, como consta do seu túmulo na sé de Braga. 

 

O poeta e nobre Zrínyi Miklós (1620-1664) conhecia o nosso Épico, aludido na epopeia Obsidio Sziget (O Assédio de Sziget, 1646); o naufrágio no Mekong, e gesto de Camões salvando o Poema, faz o seu curso na ficção húngara desde 1842 a 1982. Conhecidas traduções deste em francês, latim ou alemão em bibliotecas locais desde, pelo menos, 1816, certo é que trechos d’Os Lusíadas são já vertidos em 1796 e em revistas de 1856 e 1865, com tradução integral neste ano, reeditada em 1874. Moderna tradução só em 1984, a que se seguiram parciais de poemas e sonetos. 

 

Entretanto, ecoa longe o terramoto de 1755; Vajda János (1827-1897) escreve patriótica “Canção lusitana” em ano de compromisso austro-húngaro (1867), que encerra as guerras nacionalistas de 1848-1849, celebradas por líricos lusos; Teófilo Braga e outros apaixonam-se pelo Byron da puszta, Petőfi Sándor (1823-1849), que Antero traduz do alemão e inclui na sua poesia completa; Déry Tibor (1896-1977) recolhe novelas em A Princesa de Portugal (trad. francesa, 1969); Uriel, de Barabás Tibor (1974, 1982), é romance sobre o judeu Uriel da Costa, que havia de protagonizar Um Bicho da Terra (1984), de Agustina Bessa Luís. Autores desde a Idade Média vêem-se coligidos nas principais antologias e nos volumes do Dicionário de Literatura Universal, da Academia das Ciências.

 

Em pintura, referimos, no Museu de Belas-Artes, quadros de Nadir Afonso e Szenes Árpád, representando este Vieira da Silva. Já marcante, é o duplo painel de azulejos de João Vieira (1996), na estação do metro da praça Deák, onde se cruzam as três linhas da capital. Nas quadrículas pintadas, as letras perfazem o nome dos poetas  Petöfi, Ady Endre (1877-1919), József Attila (1905-1937), bem como os de Camões, Cesário Verde, Pessoa, dos quais se lêem versos traduzidos. Na música, se Vianna da Mota bebeu em Liszt Ferenc e Fernando Lopes Graça em Bartók Béla, não menos deve a discografia de Lopes Graça e de Joly Braga Santos aos solistas, orquestras e gravações em Budapeste.  

 

Com a entrada da Hungria na União Europeia (2004), o comportamento português passou a ser estudado e discutido na Comunicação Social: se, no termo da Primeira Grande Guerra, a Madeira foi lugar de exílio do último Habsburgo, o imperador Carlos I, ou Carlos IV da Hungria, que morreu no Funchal em 1-IV-1922; se, com a Segunda Guerra Mundial, a Legação de Portugal deixou boa imagem, e pudemos acolher refugiados ou exilados como o regente Horthy Miklós; se, após a insurreição de 1956, a solidariedade dos intelectuais ecoou longe, e até famílias bragançanas receberam crianças refugiadas, agora, as imagens assemelham-se à doce rivalidade que, desde a corte setecentista de Maria Teresa – onde se passeou Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, em diálogo com os nobres Esterházy –, existe entre os vinhos do Porto e Tókaji, pretendendo-se este «vinho dos reis e rei dos vinhos». 

 

Em 1964, o Sporting ganhou a Taça das Taças ao MTK de Budapeste; a vitória da selecção de Eusébio no Mundial de 1966 sobre a Hungria é comentada; Fehér Miklós morreu em Portugal (2004) e teve honras de Estado na terra natal. Face a isto, as representações corticeira, vinícola e outras diluem-se em quem vai entendendo as potencialidades de cada idioma, confirmando séculos de relações que a exposição bibliográfica e cartográfica do Centro Cultural Adriano Moreira bem documenta.

 


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