A opinião de ...

Morder a Mão

A expressão que titula a crónica atravessa os variados universos da gratidão/ingratidão, duas categorias da conduta humana. A novela BES tem revelado múltiplas fórmulas de ingratidão pondo em confronto actores peritos na arte de sacudirem a água do capote, possuídos de estrídula amnésia. Os figurantes desta ópera bufa nem se dão ao trabalho de disfarçar, o apelido Bava passou a significar esquecimento, pairando no ar a certeza de a ingratidão correr a rodos ao modo do deslizar de centenas de milhões de euros sabe-se lá para onde. O novelista duriense Domingos Monteiro autor de Enfermaria e Enfermaria, Prisão e Casa Mortuária passou uma temporada na cadeia vítima de ingratidão, o mesmo sucedeu a um coronel nordestino no reinado de Santos Costa ainda subalterno governamental. O autor de Histórias Castelhanas dizia em tom irónico que a gratidão não se vendia nas farmácias, nesse facto residia a razão da sua escassez no concerto do devir dos homens. Acrescentava em tom amargo: mesmo podendo o melhor é não nos interessarmos e não fazermos favores a ninguém dessa forma não sofremos amargos de boca a apertos no coração. As mudanças sociais ocorridas nos últimos anos conjuntamente com as transformações tecnológicas levaram ao arredondamento das relações num mimetismo galopante a gerar falsas informalidades dando a sensação de todos serem amáveis quase obsequiosos num arremedo de gratidão desfeito mal surge a oportunidade. Não há excepções? Há, eis a razão de apesar da enxurrada de desilusões devermos continuar a praticar a ajuda sempre que possamos, no entanto, manda o bom senso questionarmo-nos sobre se é sinal de inteligência repetirmos as acções beneficiando quem nos mordeu a mão. A vertiginosa velocidade da informação dá-nos a conhecer as consequências do incumprimento dos compromissos assumidos, a blindagem de contratos insinua claramente o triunfo do conceito de gato por lebre. As bavas vão continuar a comer os rendimentos de todos quantos pagam impostos, por outro lado as pessoas menos atentas e confiadas no valor da palavra dada (está em desuso) adquiriram papéis e produtos tóxicos vampiros das suas economias sem que haja vislumbre de ressarcimento dos afectados. Se pudéssemos imitávamos Papini, comprávamos uma República. Não podemos; ainda bem, mas podemos tomar medidas de modo a o valor da gratidão se sobrepor às nefandas práticas dos ingratos dando-os a conhecer no pressuposto de lhes tolher a passada na caça aos inocentes.

Edição
3519

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