A opinião de ...

Requiescat in pace

No intuito de combater a pandemia o governo decidiu impedir os vivos de no dia 2 de Novembro visitarem, chorarem, e honrarem os seus familiares, os seus saudosos entes queridos enterrados nos cemitérios, no intuito (impulsivo…) de combater a pandemia. Apesar de nesse mesmo dia os governantes irem lembrar as vítimas da peste é um acto arriscado porque toca na sensível lembrança dos membros nucleares de cada um (pais, avós, irmãos, tios e primos), os quais escolhiam a data para (pelo menos) uma vez em cada ano publicamente lhe renderem preito.

Será que não havia outras formas de agir? Será que os interessados na formulação das homenagens aos falecidos não seriam capazes de cumprirem escrupulosamente as normas de distanciamento sanitário? Sim, eu sei, nós sabemos, da nossa predisposição para o relaxamento, a facilidade, em suma «a balda» expressão ziguezagueante entre o calão e linguagem corrente em quase todos os estratos sociais. Ora, conhecida e usada a torto e a direito, também podia servir de mote à chamada à ordem dos visitantes das campas, dos covais e dos jazigos porque todos conhecem o seu significado a todos os níveis, incluindo os coercivos.
Os cemitérios mostram expressivas hierofanias, aludem à coexistência do sagrado e do profano, à finitude da vida, ao acabarmos em cinzas e pó. Durante anos e anos interessado em perceber minimamente o quotidiano de cidades e comunidades de múltiplas origens tive a preocupação de entrar, observar e perscrutar os seus cemitérios, neles estão expostas as vaidades, as mundanidades, as bondades, bem como as maldades de mulheres e homens todas as condições, tal como sabemos através dos sítios arqueológicos, monumentos e livros de estudo a importância dos sistemas funerários após o passamento das pessoas. Os mortos são honrados e os profanadores desses sistemas sempre receberam e recebem censuras, punições e castigos de acordo com as normas de cada comunidade, povo e nação.

No célebre livro Os Nus e os Mortos, Norman Mailler aborda o tema de forma a causar-nos a obrigação de meditarmos sobre a nossa condição de seres medrosos, maus, igualmente bondosos, ora capazes de gestos gráceis, ora autores de monstruosidades invulgares. No caso em apreço a crise sanitária além das vítimas que origina, até os mortos desinquieta. Temos de saber resistir!

Edição
3805

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