A opinião de ...

A cor da música é a cor da alma

Cantar é próprio da alma. Num tempo marcadamente festivo, com a música acompanhar os dias das vidas de cada um de nós, compreendemos a relação ôntica e umbilical da música com a alma. De facto, além dos múltiplos sons que unem o pluralismo e a diversidade numa harmonia desconcertante, a música tem igualmente cor uma vez que o som traz cor e luz à alma, à vida íntima da pessoa humana. Quantas vezes uma música não nos transporta para uma memória, para um encontro marcante e belo? A música aproxima-nos connosco mesmos, com os outros e com Deus Nosso Senhor.
Quando escutamos e lemos a Parábola do Bom Samaritano (uma das três parábolas da misericórdia do Evangelho de São Lucas) apercebemo-nos bem desta perturbante e inquietante pedagogia divina. Recordemos a passagem bíblica desta Parábola (cf. Lc 10, 25-37): Jesus é confrontado por um escriva que não quer outra coisa senão entalar Jesus. Por isso ele questiona Jesus sobre o que fazer para receber a vida eterna. A resposta de Jesus é feita numa pergunta: ‘como tu lês a Lei? (...) Faz isso e viverás’ O escriva, já entalado, quer-se redimir fazendo uma outra pergunta: ‘quem é o próximo?’ Com esta – julgava ele – Jesus era ‘apanhado’. O coitado do escriva leva outra ‘coça’ por parte de Jesus. É aqui que Jesus conta a Parábola do Bom Samaritano.
Tomemos atenção. Jesus ensina que o ‘próximo’ é aquele que se aproxima. Antes do aparecimento em cena do Samaritano, Jesus recorda que passam junto daquele flagelado, daquele meio morto, daquele que jazia na berma da estrada e da existência humana, dois sabedores da Lei: um sacerdote e um levita. Dois homens que conhecem e ensinam a Palavra de Deus e a Lei. São homens que têm a Lei na boca, mas não a têm no coração. Ensinam-na aos outros, mas não a vivem nas suas vidas. Concluímos, portanto, que o amor ao próximo não aproxima, não desce e nem toca. Ora, é a amar sem intimidade e sem proximidade.
O Samaritano – o estrangeiro e o pagão – é aquele que manifesta que para Deus o amar o próximo é fazer-se próximo. Vejam a beleza narrativa de São Lucas quando Jesus relata a reação e acção deste Samaritano: “um samaritano, que ia de viagem, passou junto dele e, ao vê-lo, encheu-se de compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas deitando azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele” (Lc 10, 33-34). Que belo! Este homem – o Samaritano – ao deparar-se com aquela tragédia humana e existencial, é capaz de mudar o seu rumo e a sua vida. Sai do centro do caminho para se dirigir até à periferia onde jaz este homem já meio morto. Quantos são os homens que jazem e agoniam na periferia do caminho! O Samaritano não só se compadece, como também se “encheu de compaixão”. “Encher” é um verbo que muito eu gosto: faz-me sempre imaginar algo a preencher, algo que enche o vazio a partir dos sentimentos mais nobre, mais edificantes e mais transformadores do sentir divino e humano. Observem como este homem sai da montada do seu próprio cavalo e coloca o agonizante no seu lugar. Sai para que o agonizante seja tratado e visto como valioso. Isto é sublime! Mais, este Samaritano não se enoja nem se enfastia por descer para cuidar e elevar o agonizante, para ligar, limpar, tocar e cuidar do desprezado que jaz na periferia. Que testemunho tão desconcertante este! Deus, de facto, está permanentemente a desinstalar-nos, a obrigar-nos a sair para as periferias existenciais, a olhar o frágil e o agonizante com olhos de quem se ama e se é amado, a sair dos nossos projectos e caminhos para que sejamos ‘mãos de Deus’.
(continua na próxima edição)

 

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3895

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