Hirondino da Paixão Fernandes Vénia, gratidão e memória
(continuação da edição anterior)
Os livros falam sempre de outros livros. Também os seus volumes falam de outros volumes, livros, revistas, jornais, sítios eletrónicos. Deve entrar-se neles com demora e solenidade. Num vórtice de signos intertextuais, ecos, ressonâncias e vozes que se complementam, Hirondino Fernandes faz-nos partícipes dum diálogo vivo. Aqui e ali, em relances fugidios, vislumbram-se ações e engenhos de detetive ou caçador. A sua obra não é exibicionismo de recolector erudito. É partilha de uma viagem pela substância do tempo.
Hirondino Fernandes foi um desses homens que levantam montanhas. A sua obra é montanha imensa, dá vertigens. A “Bibliografia do Distrito de Bragança” (BdB) é um monumento para a posteridade. Tem o preço de uma vida.
No dia 5 do corrente, ao lado da urna que lhe guardava o corpo, expunha-se uma fotografia em que segurava nas mãos um volume da sua “BdB”. Diante do reduzido número de pessoas presentes na Igreja da Misericórdia, não sei dizer da oportunidade ou ironia daquela imagem. Gostei de a ver ali. Se a “cultura paga mal” e “os velhos”, como então escutei “não interessam a ninguém” – em ambos os casos sobejam os exemplos –, aquela fotografia pareceu-me signo de resistência e afirmação da imortalidade simbólica do seu autor.
Não cabe aqui o perfil de Hirondino Fernandes, menos ainda o elenco, frio o sumário que seja, do seu legado. Como subsídio, consulte-se a “BdB”, vol. III, pp. 289-314; “E eu a cuidar”, volume de contos, da sua autoria, bem-humorado, em linguagem popular, no qual se faz a exaltação desse património regional único que é a riqueza linguística autóctone, com Glossário, ilustrado, de 154 páginas, editado, em 2018, com a chancela da Câmara Municipal. Também ali, em Marginália, pp. 141-150, retoma uma entrevista, a nossos olhos, particularmente rica. Referência merece ainda o opúsculo “Tal c’mo bos-e-o-disse”, com as palavras que proferiu, em outubro de 2019, aquando da apresentação de “E eu a cuidar”. Em preparação, além dos anunciados volumes da “BdB”, tinha um volume com alguma da correspondência que lhe foi sendo dirigida.
Mais do que amigo do distrito de Bragança, Hirondino Fernandes foi amante. Sim, o substantivo “amante” explica muito mais a sua obra do que o adjetivo “amigo”. Não se pense, pois, em paixão, que é fogo de fósforo, mas em amor, conquanto é tenaz, paciente, fogo de estrafogueiro em noites longas de inverno.
O que é a gratidão? Sabemos tão pouco do que realmente importa, mas “gratidão” foi sentimento que Hirondino Fernandes alimentou e cuidou nos seus escritos e alocuções. De si mesmo, citando António Ferreira, poeta do séc. XVI, disse: “Eu desta Glória só fico contente / que minha terra amei e a minha gente”.
De há muito se sabe que a singularidade, a idade e a solidão caminham juntas. No desabrigo do tempo, somos todos vulneráveis e peregrinos. Os últimos anos de vida do Dr. Hirondino Fernandes foram um lugar solitário, porventura de bruma e distância. Talvez desse lugar se assomasse ao mundo e, por detrás dum vidro de janela, celebrasse o voo e os pulinhos dos melros. Sim, haverá sempre um melro nas manhãs da nossa amizade.
O Dr. Hirondino da Paixão Fernandes foi sócio honorário, desde a sua génese, da Academia de Letras de Trás-os-Montes. Estas linhas pouco mais são, afinal, do que cópia de outras que a esse propósito escrevi.