A opinião de ...

Dicionário do estômago

Vem o Outono e dá-nos para apetecer mesa demorada, uns acepipes que combatam tristezas de nação em piloto automático, como se não precisássemos de governo, nem de orçamento. O tempo arrefece, mas ao bacalhau constipado (também eu começo a ficar) prefiro um bacalhau da bruxa de Valpaços, que ignorava existisse: afinal, diz Virgílio Nogueiro Gomes no agora saído do forno Dicionário Prático da Cozinha Portuguesa (Marcador, 2015), também há coelho da bruxa de Valpaços…
Eu gostava que ele me explicasse estas e outras bruxarias que alegram o estômago, mas muito faz Amigo ao prender-me em manhã de São Martinho – há, também, um bacalhau de São Martinho, madeirense – à substância dessas páginas, onde tanto se aprende, e tanta nostalgia sobe de entradas entre aba e zurrapa. Como se não bastasse, oferece-nos, a mim e a Teresa, o Dicionário… e um cozido, no restaurante Nobre, da macedense Justa Nobre. Acompanhá-lo por outros templos do bom gosto é sempre um prazer, luxo que nem aos deuses antigos (além da ambrósia) era concedido.
Ora, além de um dicionário da especialidade, torna-se, aqui e ali, enciclopédia, além de receituário. Reconheço a olha-podrida, informo-me sobre o abade de Priscos, e mal sabia eu que, na semana seguinte, iria provar ouriços de castanha de Eurico Castro (p. 263-264), no novel restaurante bragançano A Porta, aí onde houve caserna militar, se bem me lembro – e Rui Caseiro confirma.
Não será de somenos o amoroso cuidado em fixar vocábulos, comes e bebes transmontanos, incluindo formas populares (larego, reco, pita, pito…). Em próxima edição, aceitará as segundas frequências, em filhó / filhós, grão-de-bico / ervanço (afora garoulo, gravanço), míscaro / níscaro, e biqueiro contraposto a boa boca. Pedindo referência, na Bibliografia ou no verbete sobre covilhetes de Vila Real, à reunião de textos Os Covilhetes, do nosso caro Elísio Amaral Neves, reedição do Grémio Literário Vila-Realense, que, diz-me A. M. Pires Cabral, já esgotou.
É uma deambulação extraordinária pelo que alimenta a lusofonia, das Áfricas ao Brasil, de Goa a Macau. Enquanto sobressaem ementas para uma cozinha regional (a começar nas açordas), surpreende a qualidade medicinal de alguns produtos, o esclarecimento do que tanto aprecio e cuja composição desconhecia (caso dos peixinhos da horta), bem como designações incomuns, que não encontramos facilmente em vitrina doceira: colchão de noiva, espera-maridos, malacuecos, melindres, pata de veado, tecolameco… Livro a consumir sem moderação.
   

Edição
3552

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