A opinião de ...

O Pobre das Conchas

Na minha aldeia, há muitos anos, havia crianças em idade escolar e mesmo próximas da idade escolar que fugiam a sete pés, quando alguém lhes dizia que vinha ali o pobre das conchas com um saco grande para as levar. Isto, sobretudo, quando queria castigar-se alguma por ter feito uma asneira ou por ter dito uma palavra feia (por ter “falado mal”, a expressão correta na minha aldeia) – o que muitas vezes acontecia quando inadvertidamente alguma se magoava, ou então quando as brincadeiras descambavam numa rixa daquelas que era preciso alguém apartar os contendores, depois de algum deles ter a cabeça rachada e o sangue a correr pela cara abaixo.
Que isto de rixas, passado pouco tempo de terem acabado, já não era nada: todos continuavam amigos, juntando-se em grupos para combinar aventuras, para escolher o chefe dessas aventuras, para ir ao campo buscar o rosmaninho e o alecrim com que enfeitavam o ramo de oliveira no Domingo de Ramos…
Era uma idade magnífica que permitia viver uma vida saudável, (com pequenos riscos, é verdade), mas que valia a pena correr, pelo bem que fazia à saúde, ao desenvolvimento e à formação do caráter.
Naquela altura, a agilidade era virtude sempre presente, tal como o crescer bem proporcionado, tanto física como mentalmente. As crianças não paravam; sempre dum lado para o outro, ora fazendo recados aos pais, ora acompanhando-os nos trabalhos do campo e até desafiando-se uns aos outros em corridas e nos mais diversos jogos.
Mesmo na idade escolar, muitos deles se encarregavam de regar a horta; de levar os animais ao pasto; de, sentados numa pedra em cima do trilho, conduzir os animais que, na eira o puxavam, na debulha dos cereais.
No tempo de aulas, mas, obviamente, bem mais nas férias, apesar das horas necessárias para aquelas e outras obrigações, ainda lhes sobejava tempo para as brincadeiras que se traduziam, sobretudo, no jogo do pião, no jogo do fito, (jogo da malha), no jogo da bola, na macaca, nas corridas, no esconde-esconde, no lançamento do papagaio de papel que eles próprios construíam, no baloiço dependurado dos olmos, feito também por eles, com a casca de ramos desta árvore; e, servindo-se de instrumentos rudimentares, na construção de carrinhos, de aviões, de miniaturas de utensílios de atividades rurais, quando não (só as meninas), a fazer uma boneca e a tricotar, para ela, umas pequeninas meias de algodão ou um casaquinho de lã.
O deambular pelos campos em dias de ar límpido, fazia, por vezes, levantar uma perdiz ou espantar um coelho que, prevendo uma hora má, fugia, não “a sete pés”, porque os não tinha, mas servindo-se, com ágil velocidade, das quatro patas.
Rezava-se; ia-se à Missa e à catequese; paravam as brincadeiras, quando tocava às Trindades; e depois das Trindades, todos tinham de estar em casa para a ceia. Depois da ceia, seroava-se, e antes de se deitarem, todos pediam a bênção aos pais e aos avós que, colocando-lhes a mão na cabeça, diziam: “Deus te abençoe!” – ato logo seguido de um beijo e do “até amanhã, se Deus quiser”. Depois, na cama, em paz, sorria-se aos sonhos maravilhosos, enquanto se recuperavam as forças para a vida continuar com o mesmo vigor, a mesma responsabilidade e as mesmas obrigações, vigiados por um bonito céu estrelado!
O encanto da Páscoa, do Natal e das festas dos santos na minha aldeia eram momentos de extraordinária alegria e camaradagem: a banda de música que, logo que chegava, dava volta à aldeia a tocar, precedida por toda a garotada, enquanto rebentavam no ar os foguetes e a respetiva corrida para apanhar as varetas, a procissão, o arraial com os foguetes de lágrimas – tudo isto era uma perfeita magia!
A família era o refúgio, o agasalho, a segurança, a convivência, o respeito, o opinar, quando para isso havia licença, e o tomar atenção aos conselhos dos mais velhos!
Quanta felicidade se perde quando não há diálogo, quando não há quem conte histórias, quando não há quem acolha preocupações e angústias, quando não existe o “porto seguro” que só a família pode proporcionar!

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3861

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