A opinião de ...

A vida foi boa para mim

Francisco Salgado Zenha faria 100 anos no passado dia 2 de maio. Nesse dia, representei o Presidente da Assembleia da República nas comemorações do seu centenário, promovidas pela Escola de Direito da Universidade do Minho.
Tive o privilégio de conhecer pessoalmente Salgado Zenha. De com ele ter privado nas reuniões do PS e em casa de amigos comuns. Pude testemunhar a sua verticalidade e intransigente defesa dos princípios e valores da ética republicana e admirar a sua excecional inteligência e capacidade argumentativa. Como mulher, tenho para com Salgado Zenha uma dívida de gratidão. Não apenas pela negociação da revisão da Concordata com a Santa Sé, que veio permitir o divórcio de casamentos católicos, mas também por ter acabado com a discriminação das mulheres no acesso à carreira da Magistratura.
Francisco Salgado Zenha marcou indelevelmente o seu tempo. Antes e depois da Revolução dos Cravos. Antes, na oposição à ditadura. Depois, na construção e aperfeiçoamento da democracia. Apesar de ser um jovem tímido, timidez de onde “espargia luz”, como alguém disse, Zenha dava nas vistas pela verve, pela inteligência, pela independência e seriedade com que defendia os direitos dos estudantes e a liberdade de expressão. As notáveis qualidades e capacidades de Zenha eram por todos reconhecidas. Por isso, desde cedo, os partidários do regime o reputaram como perigoso adversário.
Em 1944, estava ele no quarto ano de Direito, foi eleito presidente da Associação Académica de Coimbra. Pela primeira vez, um estudante foi eleito pelos seus pares para presidir à direção da prestigiada Associação. Essa vitória estudantil durou apenas seis meses. Em 45, Zenha foi destituído pelo governo, por se ter recusado a participar numa manifestação, que o regime classificou de “espontânea”, de agradecimento a Salazar por ter salvado o país das agruras da II grande guerra. No tempo em que reinava o medo, em que “o cuidado era total com o que se dizia, a quem se dizia, onde se dizia”, Zenha ousou não ter medo e contrariar o seguidismo político. Por isso foi perseguido e preso. Em 1947, foi preso pela primeira vez, acusado de ser “protagonista de atividades subversivas contra a segurança do Estado”. Rezam as crónicas da época que, na entrada da prisão, os presos políticos eram confrontados com a aterradora inscrição: “abandonai toda a esperança, vós que entrais”. Zenha não abandonou a esperança nem os seus colegas o abandonaram. Em resposta à arbitrária prisão e à prepotência do regime, a Assembleia Magna da Universidade de Coimbra decretou luto académico.
Conhece Mário Soares, em 1949, tendo ambos participado ativamente na candidatura de Norton de Matos. O mesmo viria a acontecer em relação à candidatura de Humberto Delgado, embora Zenha estivesse formalmente proibido de exercer quaisquer atividades políticas. Como Mário Soares, também ele foi defensor de presos políticos, tendo-se distinguido pela força e rigor dos argumentos e pela intransigente defesa dos direitos humanos. O tema da sua tese de licenciatura foi o Julgamento de Nuremberga, o que diz muito desta singular personalidade. Tema que me recorda a afirmação de Benjamim Ferencz, procurador nesse famoso julgamento, “tudo o que é preciso para que o mal vença é que pessoas boas não façam nada”. Palavras que mantêm preocupante atualidade e que, tendo em conta o sucedido no passado dia 25 de Abril, não podem deixar de nos interpelar, responsabilizar e levar a agir.
Como político, Zenha foi candidato a deputado pela oposição democrática, entre 1965 e 1969. Após o 25 de Abril, foi deputado e líder do grupo parlamentar do PS, de que fora fundador, ministro da Justiça e das Finanças, candidato à Presidência da República. Participou sempre nos grandes debates da vida nacional. O seu nome ficou indelevelmente ligado a temas como a unicidade sindical, o divórcio, a liberdade de ensino, entre outros. Termino, recorrendo às suas palavras, proferidas no jantar de aniversário dos seus 70 anos: “sinto-me satisfeito por haver alguém que julgou ter sido, ou ser, positiva a minha presença na terra. Pela parte que me toca, sei que a vida foi boa para mim”.

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