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A história do Ford Fordson FA-16-14, um dos primeiros carros de Bragança

Corria o ano de 1950.
Havia já 3 anos que a lã ia sendo paulatinamente comprada por toda aquela região transmontana, para além da Lombada e acumulada no armazém, à espera que o preço da arroba subisse um pouco, coisa que tardava a acontecer por aquelas bandas.
O lucro não era muito, mas aquela parecia ser a altura certa para vender.
-  Pai, é melhor falar com o Sr. Manuel Correia para levar a carrada da lã ao Porto.
E assim aconteceu, em Maio de 1950, parte de Babe (Bragança), um camião carregado com toneladas de lã, em direcção à Rua do Freixo nº 905, no Porto, zona tipicamente comercial, onde se situava a grande lavandaria de lã Henrique Augusto Guedes & filhos.
Depois de alguma negociação, foi fechado o negócio da venda da lã por 42 contos de reis. Não era uma fortuna, mas era um valor considerável na época.

Dá-se então início à concretização de um sonho antigo, quando anos antes, na ferradoria do Manuel “Ferrador”, onde guardavam os cavalos nas viagens Babe/Bragança, vê uma mota a um rapaz de Rabal que estava na tropa.
-    Quando eu for para a tropa quero comprar uma mota igual, Pai.
O Pai anuiu, mas chegada essa altura…
-    Então ainda queres a mota?
-    Não Pai, agora quero um carro!
A tropa e a mota ficaram no passado… o carro seria a ferramenta ideal e única para transformar o negócio para outra dimensão e geografia.

 

 

Em 1949, com 22 anos e já com mais de meia dúzia de anos a trabalhar, a reinventar e liderar o negócio dos pais e avós, ruma a Lisboa, para casa do tio Manuel Inácio Praça, homem muito respeitado na baixa comercial da capital, onde era proprietário da vidraria
 
Império e por quem nutria uma grande amizade, admiração e cumplicidade, pois era apenas 20 anos mais velho.
Ali permaneceu um mês para tirar a carta, pois na cidade de Bragança na época ainda não era possível.

Mas era agora mais a norte que tudo acontecia.
Depois de uma noite mal dormida na Pensão Universal, na baixa do Porto, tal era a ansiedade, pai e filho atravessam a Avenida dos Aliados e entram no Palácio Ford.
Fazendo o balanço entre a necessidade de um carro de caixa aberta, a conveniência de um carro fechado e o dinheiro no bolso, as atenções viram-se para um furgão de generosas dimensões, 7 lugares e bancos rebatíveis. Era o carro ideal!
Entram e saem do stand algumas vezes por uma diferença de 500 escudos… meio conto de Reis… o carro custava 42.500 escudos e a lã só tinha rendido 42.000 escudos.
Bem, lá teria que ser… já estavam convencidos a desembolsar mais 500 escudos, mas com aquele instinto negociador e numa última tentativa, entram novamente mas com o argumento que iam comprar a outro lado.
O vendedor, Sr. Seixas, desabafa: pois bem, levem lá o carro pelos 42 contos!

Tinha começado a epopeia!
Feito o seguro na companhia Social da rua Sá da Bandeira e já com o carro carregado de “potes”, “atados de aço” e mais algumas novidades que por isso mesmo pouco tempo paravam nas prateleiras, o jovem de 23 anos que tinha tirado a carta há um ano em Lisboa, que poucas ruas do Porto conhecia, pega no volante e descobre que o carro tinha no sítio do acelerador o travão! Sim, embraiagem no pedal da esquerda, na direita o travão e no meio o pedal para acelerar. Seria preciso mais uma dose de coragem para tirar o pé do travão e colocar no acelerador!
Tinham pela frente mais de 250 km, em estrada com mais curvas que rectas, de alcatrão rarefeito e a serpenteada serra do marão para atravessar, que apesar da água fresca das fontes, fazia embrulhar o estômago ainda mais.
Mas era um sonho em concretização e nada dá mais força que isso. Eram 9h da manhã.
Depois de 11h de viagem, em que as palavras entre ambos ficaram no pensamento e a merenda sobrava, chegam a Babe pelas 8h da noite.

Ainda sem perceber bem como tinham chegado, o pai segura dois quadros que trazia para a esposa, um com a imagem do Sagrado Coração de Jesus e outro de Maria Sua Mãe e diz:
-    Líria, olha, foram Estes Dois que nos trouxeram para casa!

O pai chamava-se Alberto Rodrigues Praça. A mãe, Líria da Cruz.
O filho, César Américo da Cruz Rodrigues Praça.

O carro, um Ford Fordson, matrícula FA-16-14, com motor de 1172cm3 de cilindrada, caixa de 3 velocidades, 30cv de potência e velocidade máxima de 64km/h, foi o primeiro carro de toda aquela região transmontana e acabou por ser também um motor de desenvolvimento!

O jovem empreendedor, que me relatou esta sua história de vida, tem hoje 98 anos e é o meu amado Pai.

 

Carro

António Rodrigues Praça
In: “Memórias que transbordam” Agosto 2025

Edição
4053

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