A opinião de ...

O Confinamento Interior

Há um princípio fundamental da Saúde Pública que podemos resumir assim: “Quando funciona, nada acontece.” Esta verdade essencial leva a que o trabalho quotidiano dos profissionais da vigilância epidemiológica, que diariamente acompanham a evolução das doenças infecciosas no nosso país, esteja invisível ao olhar comum. Porém, eles cá estão, cumprindo a sua missão patriótica, infelizmente com um défice de recursos significativo.

Um dos pilares da estratégia de combate à pandemia assenta no famoso confinamento. Faz sentido: um vírus que se transmite principalmente pelo contacto entre pessoas, resolve-se pelo seu afastamento.

O ser humano, que é um ser social, resiste a isolar-se. Está no nosso ADN que a ação coletiva é benéfica, libertamos neurotransmissores da felicidade quando abraçamos alguém, utilizamos a linguagem do corpo com mais naturalidade do que a difícil e escorregadia linguagem escrita e falada.

Com a restrição das atividades produtivas e laborais, o acesso limitado ao ensino presencial, a conflitualidade entre a vida laboral online e a vida pessoal, e a diluição dos horários e rotinas, o resultado é um agravamento profundo das desigualdades. Os mais ricos passam por esta crise razoavelmente intocados, enquanto os mais pobres desabam e se fragilizam ainda mais.

As terras do interior do país foram, no verão passado - e sê-lo-ão novamente no verão deste ano -, destino preferencial para os mais privilegiados das urbes litorais, que procuram um lugar desempoeirado e um pouco mais livre para celebrarem o seu confinamento glorificado. O turismo regional agradece, e com razão, mas convém não tirar do escopo de análise a fina ironia de ver o nosso interior desertificado e abandonado pelo poder central ser, na altura da crise aguda, refúgio romântico para os ricos de Lisboa.

Nada disto é novo. A poesia clarividente de Cesário Verde, filho de comerciantes abastados e vitimado ainda novo pela tuberculose, explica-nos a psique paranóica da capital derrotada pela peste em meados do século XIX. Recordemos um excerto do seu poema “Nós”: “Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre / E a Cólera também andaram na cidade, / Que esta população, com um terror de lebre, / Fugiu da capital como da tempestade.”

O campo é, de facto, uma medida de salubridade. A qualidade do ar, por exemplo, é um privilégio que raramente lembramos, mesmo quando a ciência nos explica que, anualmente, morrem 4.2 milhões de pessoas em todo o mundo por patologias associadas à poluição atmosférica.

Um olhar de esperança sobre os eventos da pandemia pode levar-nos a pensar que, com sorte e astúcia, talvez possa vir a nascer de novo o interesse do país pelo seu interior. Um interior para o qual olhamos só em época de incêndios, com um baixo peso no sistema de representação política, com uma sempre adiada descentralização de competências. Podemos sonhar com um futuro próximo em que o valor da vida bucólica, dos idosos, dos campos e das serras, regresse ao imaginário nacional como oportunidade de investimento e crescimento. Escreveu Cesário sobre o seu pai: “Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas / (Até então nós só tivéramos sarampo). / Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas / Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!”.
Afinal de contas, nem todos os confinamentos são iguais. Se é para encerrar temporariamente as nossas vidas sociais, ao menos que tenhamos vistas largas e ar puro.

Edição
3821

Assinaturas MDB