A opinião de ...

Querem deixar o Interior sem voz

Há decisões que passam despercebidas nos corredores de Lisboa, mas que fazem tremer terras inteiras deste lado da raia. O anúncio do fim da distribuição de jornais pela VASP em vários distritos do Interior, entre eles Bragança, é uma dessas decisões silenciosas que, no entanto, gritam. Gritam pela ausência, pela invisibilidade a que votam os territórios que teimam em existir longe dos grandes centros.
Durante décadas, os jornais chegaram às bancas, às aldeias e às mãos calejadas de quem, antes de abrir a porta de casa, gostava de abrir primeiro o mundo. A distribuição podia atrasar-se com a neve, perder-se em estradas sinuosas ou chegar amarrotada pela pressa. Mas chegava. Agora, arrisca-se a não chegar de todo. E isso, para muitos, é mais do que um incómodo logístico: é uma amputação cívica.
Num distrito como o de Bragança, onde a longevidade da população convive com dificuldades de acesso digital e onde a imprensa continua a ser ponto de encontro, testemunho e memória, a ausência de jornais em papel não é um detalhe. É um corte na circulação da informação, um abalo no quotidiano económico de empresas locais e um golpe na própria noção de serviço público, cuja necessidade ficou bem evidente, por exemplo, durante a pandemia de covid-19.
Ainda recentemente, numa aula, recordei os três propósitos atribuídos aos meios de comunicação pelo investigador Harold Lasswell. Estas funções foram apresentadas no seu trabalho de 1948 e tornaram-se referência clássica nas Ciências da Comunicação.
A primeira delas é a vigilância. Os meios de comunicação têm a função de observar o mundo e transmitir informação relevante ao público.
A segunda é a correlação das partes da sociedade. Os meios não se limitam a informar: interpretam, contextualizam e explicam o significado dos acontecimentos.
Por fim, a transmissão cultural. Os meios de comunicação também servem para transmitir valores, normas e cultura de uma geração para a seguinte.
A verdade é que um jornal não é apenas um objeto de papel. É um mediador de cidadania. Quando deixa de chegar, não desaparece só uma notícia, desaparece o direito fundamental à informação, aquele que a Constituição promete, mas que as assimetrias do território insistem em desmentir.
Podemos adornar o discurso com expressões técnicas, falar em “reconfigurações logísticas” ou em “modelos de negócio insustentáveis”. Mas, no final, o que está em causa é simples: deixar de distribuir jornais no Interior é aceitar que há portugueses menos informados do que outros. E uma democracia que aceita isso, aceita demasiado.
As democracias não se defendem apenas com discursos inflamados nem com anúncios governamentais: defendem-se garantindo que a informação chega a todos, sobretudo a quem vive onde as sombras são mais longas.
Esta não é apenas uma questão comercial da VASP. É uma questão de país. É o futuro do Interior, dos seus leitores, das suas empresas e do seu direito a existir no mesmo patamar de cidadania que qualquer habitante da capital.
Se o Estado quer realmente combater o despovoamento, a desertificação e o fosso entre litoral e Interior, começa por aqui: garantindo que ninguém fica sem jornal porque alguém decidiu que não compensa levá-lo. A democracia, essa sim, nunca se pode dar ao luxo de não compensar.
E não se pense que são os jornais regionais quem mais perde. O modelo de subscrição implica que a distribuição dos jornais regionais, como o Mensageiro de Bragança, seja feita pelos CTT e não pela VASP.
A questão é que cada vez mais a informação que chega aos cidadãos é controlada por bots e inteligência artificial. Grande parte dos cidadãos até aos 40 anos prefere informar-se digitalmente do que com a leitura de jornais. Por isso fica mais exposto à manipulação em tempo de eleições, por exemplo, como aconteceu já noutros países. Tirar ao povo a liberdade de escolher, seja pela força, seja pela malícia, é colocar amarras na democracia, como aquelas que existiam antes do 25 de Abril.
É urgente o Estado tomar as rédeas da situação para defender o cumprimento da Constituição, que no seu artigo 37.º consagra o direito de todo o cidadão informar-se e ser informado.
E não precisa ser com subsídios. Mas, desde logo, urge combater o fenómeno da pirataria, com a distribuição gratuita de jornais pelas redes sociais.
Por outro lado, as grandes plataformas como a Google, a Meta (dona, entre outras, do Facebook, do Instagram e do Whatsapp), bem como as diversas plataformas de Inteligência Artificial, que se alimentam dos conteúdos produzidos pelos jornais, começarem a pagar por isso, tal como já acontece com a música e os direitos conexos, por exemplo.
Mas não me admira que os governantes assobiem para o lado, pois o fim de uma comunicação social livre e financeiramente independente significaria, porventura, menos notícias incómodas...
Numa altura como estas, vem-me à ideia o lamento de Martin Niemöller, a propósito da passividade perante o avanço do nazismo:
“Primeiro eles vieram buscar os socialistas, e eu fiquei calado — porque não era socialista.
Então, vieram buscar os sindicalistas, e eu fiquei calado — porque não era sindicalista.
Em seguida, vieram buscar os judeus, e eu fiquei calado — porque não era judeu.
Foi então que eles vieram me buscar, e já não havia mais ninguém para me defender.”
Primeiro, parece que querem vir buscar os jornais. Se assobiar para o lado, não se admire que, quando o vierem buscar a si, não haja ninguém para o defender...

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