A opinião de ...

O meu herói

«…Exorcizo o paludismo
apeio a poliomielite
amputo a desgraça
e eis a graça da criança
florescendo a vida».
António Soares Lopes (poeta guineense)

1. Hoje é o Dia Mundial da Criança, assinalado nesta data entre nós e noutros países, ainda que a ONU tenha reconhecido o dia 20 de novembro como o momento da aprovação da Declaração Universal dos Direitos da Criança, em 1959, e da Convenção dos Direitos da Criança, em 1989. Dois documentos importantes que deveriam merecer, como outros de natureza universal (a Declaração de Salamanca, que versa  os princípios, política e prática em educação especial, de 1994; a Declaração Universal dos Direitos Humanos que estabelece os direitos básicos, de 1948; a Declaração de Bolonha, um acordo de diversos países, datado de 1999, que deu início ao processo de convergência dos estudos universitários), as preocupações efetivas dos nossos decisores políticos, a nível nacional e a nível autárquico.
Muito há que fazer pelas crianças do nosso país e pelas crianças de todo o Mundo. Sei do que falo.
2. Hoje gostaria de recordar o Mamadu, o Seko, o Godinho, três meninos que, vivendo na tabanca (aldeia) junto do aquartelamento, em plena guerra colonial, na Guiné, visitavam os militares na procura de apoio, em material escolar e comida. O que sofreram durante a guerra! Gostaria de recordar o adolescente Hilário que ansiava fazer o seu curso comercial e que as fronteiras da guerra iam impedindo. Mais próximo, gostaria de recordar o meu colega de nove anos de idade, o Joaquim, que subia as ladeiras que vinham da Quinta do Rego da Barca, na Foz do Sabor, até à Vila, descalço, de verão e de inverno. Gostaria de falar deles. Longe e perto, exemplos de sacrifício.
3. O Seko, vinte anos mas tarde, já com filhos, andou sessenta quilómetros a pé, à boleia, para visitar o seu amigo, antes graduado numa guerra desnecessária, agora cooperante na capital do novel país. Encharcado até aos ossos pela chuva violenta, trazia uma galinha – a sua oferta. E trazia igualmente um pedido: “por favor ajuda-me, preciso da tua ajuda para os meus filhos”.
4. O Hilário fez-se chefe após estudos na Rússia. Precisando eu de gasolina para me deslocar em Bissau, em momento de imensas dificuldades sentidas na capital, fui à direção de combustíveis. No gabinete da chefia estava um senhor que, olhando, mirando, afirmou: o senhor é o alferes tal; demo-nos um abraço fraterno.
5. Mas o meu herói, se quereis saber, o meu herói da infância (considerando que a infância ia dos seis ao doze anos), foi o Abílio. Subia às oliveiras a espreitar os ninhos. Eu ficava em baixo a ver. Atirava-se para o Sabor mal chegávamos à margem nos dias de quentes de Agosto. Eu ficava-me nas bordas. Corria muito mais do que eu nos jogos de bola. Eu ia-me abaixo. Ia a uma horta vizinha colher cerejas. Eu ficava no portal. Este foi, é, o meu herói.
Não sei se alguma vez estes amigos de antanho terão ouvido falar dos documentos acima referidos. Tenho uma certeza: sofreram muito. Deles falei aos meus filhos e agora falo aos meus netos – estes que dominam as ferramentas da Internet e que depressa lerão a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, de 11 de maio deste ano da Era Cristã, de tantas diferenças sociais, económicas e culturais.

Edição
3834

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