A opinião de ...

Lei da Vida...

Foi local de acolhimento, de quietude, de meditação. Fui lá, vezes sem conta, pelo fresco do nascer do dia. Chegava cedo, a rondar as sete, com o sol ainda por detrás dos picos das serranias. Estacionava o carro em cima do tojo ressequido pelo sufoco de Agosto, chão raso apropriado ao efeito, o pó acumulado camuflava os cintilares das cromagens e dos vidros protetores. Uma velha cadeira de praia, carcaça de alumínio e lona riscada multicor, foi companheira todas as vezes que por aqui demandei. Mas o livro, o propósito deste querer, variou ao sabor dos palpites, da curiosidade.
Aquele sobreiro ancião, de avantajada e farta copa, irradiava a sombra com a qual mil vezes sonhava e, no primeiro dia de férias que o procurava, parecia mesmo que me esperava. Só depois de bem recostado contra o carcomido tronco do meu amigo me dispunha a cumprimentar o horizonte para lá de Carviçais, bem por de cima dos montes escuros prenhes de ferro e volfrâmio. Feitas as pazes pela longa ausência, embrenhava-me pelos caminhos das letras.
Hoje vim para ler um livro especial, escrito nas cantarias ancestrais, é alvorada, mais cedo que o costume, o sol ainda despe o pijama para se levantar e, já depois de bem refastelado, dei comigo a matutar sobre toda a envolvente, deste promontório e de dois seres edificados, aqui plantados desde os primórdios do lugarejo. Fui ter com o mais perto de mim, os escombros do telhado há muito que dormem no chão térreo, fascina-me pela altivez: paredes xistosas de castanho mel, bem assentes por mãos que sabiam, parecem querer-me contar a História do pequeno burgo, tinham assistido a tudo mas a natureza assim as fez, mudas são estas pedras. A porta, a planta e o local ermo, informam-me que por aqui andou pastor e rebanho, de cabras e ovelhas.
Mesmo em frente, após larga e curta curva, no prenúncio da descida, bem caiado, já aumentado, muro branco imaculado, faz-se ver ao longe, a vista alcança-o mesmo à entrada de quem procura esta aldeia, acredito ser dos primeiros a cumprimentar os forasteiros. Do imponente portão de ferro, com generosa corrente que se deixa desatar, avista-se o espaço murado, aqui habita o silêncio que nos ordena respeito. Sente-se a paragem do tempo, dá mesmo a impressão que até mesmo os ventos circundam sem assobiar, pressentindo a lei do cosmos, a eternidade.
O cordão umbilical, ligador entre o sopé e o monte, entre a labuta e a elevação, conta-nos o mistério da passagem, onde se constroem as memórias. Aqui, nestas ruínas, junto à porta caída onde um ferrugento ferrolho me fixa quase a falar, tento ligar as casas vazias que lá em baixo suspiram e as multicoloridas flores enjarradas que assinalam as profundas e genuínas saudades dos que procuram este cimo para se completarem nos recordares.
No Sendim da Ribeira, Alfândega da Fé, estes dois marcos, a corriça, porque a tudo assistiu, e o muro branco, são duas brilhantes folhas do livro da Lei da Vida…

Edição
3740

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