Daí lavo as minhas mãos
Um mundo diferente não pode ser construído por pessoas indiferentes, citando Peter Marshall.
Por isso, percebida nos relatos do Evangelho da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus, a atitude de Pôncio Pilatos - “daí lavo as minhas mãos” -, com o receio de voltar contra os romanos a elite eclesiástica do judaísmo, evitando pronunciar-se sobre a pena a aplicar, ainda que denotasse a possibilidade de estar inclinado ao indulto, terá levado a deixar andar o processo no sentido da crucificação de Jesus.
Esta situação deu origem à expressão popular “lavar as mãos como Pôncio Pilatos” que significa fugir à responsabilidade de tomar decisões difíceis.
É verdade que na história, cada época vivida traz em si momentos críticos, mas nestes últimos tempos, temos assistido a vários e que tem abalado sobremaneira as nossas certezas fundamentais e o nosso modus vivendi.
A pandemia de Covid-19 e as suas consequências são “apenas” mais um desses momentos de crise e que expôs ainda mais as fragilidades já anteriormente evidenciadas, como o sistema económico-financeiro que tem no centro não o ser humano, mas o dinheiro; a fome e a pobreza em certas regiões do mundo; a crise dos refugiados; a deterioração do ambiente e a necessidade de transição energética e diminuição do seu consumo; a crescente escassez de água; os conflitos armados e os ataques terroristas; o domínio das multinacionais tecnológicas e das redes sociais; o desenvolvimento das influências controladoras da informação e as fake news; a crise de valores morais, etc.
Ou ainda, como as que se experienciam a nível nacional, nomeadamente a fragilidade do tecido empresarial e social; a diminuição do emprego; as intermitências responsivas do sistema nacional de saúde; a crise demográfica e o despovoamento do interior do país; o aumento da corrupção; a falta de participação política e cívica dos cidadãos; a falta de visão e de compromisso a médio e a longo prazo de muitos dos responsáveis políticos; etc.
Então, diante desta realidade difícil, do momento crítico que atravessamos, desta crise, quais são as reações possíveis e desejáveis?
A este propósito, os chineses, quando querem escrever a palavra “crise”, escrevem-na com dois ideogramas (símbolo gráfico): um significa perigo e o outro significa oportunidade.
Assim, perante a crise pode ocorrer a desilusão, a resignação, o pessimismo, em relação a cada possibilidade de intervenção eficaz e eficiente, pessoal e coletivamente, que faz emergir uma mentalidade semelhante àquela de Pôncio Pilatos.
Esta atitude representará o mais perigoso desdém pelo anseio incontável da humanidade, de responsabilidade social, de desenvolvimento e de justiça e que conduz ao individualismo cego, ao cinismo e à degradação social.
O outro caminho, em que este momento historicamente difícil que estamos a viver nos deve impulsionar e decidir percorrer, sem tibiezas e hesitações (vencendo a síndrome de Pilatos), é ter a consciência de que não é fácil, mas é possível encontrar oportunidades, novos horizontes de esperança e de realização para a nossa sociedade.
Em diálogo, proximidade e solidariedade, palavras que nos tempos de crise arriscam a ser banidas do dicionário!
Poderemos estar a viver uma oportunidade, se a soubermos aproveitar, de se construir um novo pensamento sobre os modelos atuais de desenvolvimento económico e social a par de uma nova conceção de progresso onde esteja no centro, o ser humano (e a natureza como sua casa), em todas as suas dimensões, incluindo a espiritual e transcendental, sob uma base de critérios éticos e espirituais que esta Semana Santa que estamos a viver também justa e apropriadamente nos aponta.
Como diz o Papa Francisco “a nós, cristãos, a própria fé dá uma esperança sólida que nos estimula a discernir a realidade, a viver a proximidade e a solidariedade, porque o próprio Deus entrou na nossa história, tornou-se homem em Jesus, imergiu na nossa debilidade, fazendo-se próximo de todos, mostrando solidariedade concreta, especialmente aos mais pobres e necessitados, abrindo-nos um horizonte infinito e seguro de esperança”.