A opinião de ...

Memória e livros

Há tempos arredado das letras, retomo hoje a lavra, tímido, mas teimoso, como quem sem saber para onde ir ou começar tem um dever para com a sua herança.
Assalta-me um tropel de imagens, como se algo empurrasse certos passados para dentro deste presente. E, queres saber, uma delas é a imagem do sulco. Escrevo-o, e evoca-se-me um velho tio de passo trôpego e taramelar constante, a teimar com a vida. Vejo-lhe as mãos gretadas, firmes na rabiça do arado. Sim, do arado. Há quantos anos foi isso? Na dianteira, em dolente resignação ou em arrancos de impaciência, “botavam” a Marquesa e a Rola; e ele atrás, carregado dos muitos anos que viveu, arrastado num cai-levanta, a saliva a escorrer-lhe pelo canto da boca, a taramelar, teimoso, de jaqueta – o que tira o frio tira o calor –, a taramelar, obstinado num devotado genufletir ao longo do sulco.
“Ah carai, que saudade!” Verdade verdadinha: só a velhice que esperamos é a mais inesperada. Mas botemos para a frente, enquanto Deus quiser e os homens nos deixarem.
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Gosto de livros. Gosto que me ofereçam livros. Gosto que os meus amigos publiquem livros e gosto que gostem, que tenham proa, nos livros que publicam. Tenho uns quantos livros. Perguntam-me se os li todos. Respondo “não, não os li e tenho a certeza que nunca conseguirei lê-los a todos”. Às vezes minto e espanto-me que acreditem na mentira, assim: “junto-os para impressionar as visitas”. É mesmo mentira. Depois de abrir um livro, gostando dele, seja por que razão seja, dificilmente consigo abandoná-lo. É um vício. Fui-me curando de vários ao longo da vida, deste ainda não consegui. Talvez não consiga. Os livros chegam a pesar-me, literalmente, como se os trouxesse às costas. Mas é um vício, pronto. E quanto a isso, no fio da navalha, no corpo a corpo da decisão, digo para mim a máxima do Wilde: a melhor forma de me libertar é ceder-lhe. Pouco edificante, mas é o que é.
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Ainda estás comigo? Talvez vá falando aqui de livros. Mas sossega, não vou armar ao fino. Ia prometer passar ao largo dos badalados, mas será melhor, à cautela, não prometer. Nem de adrede, tenho diante de mim uma pequena, económica e muito linda edição dos “Esteiros” de Soeiro Pereira Gomes, lançada pelas edições Húmus, nos 80 anos da publicação do romance. E, vá-se lá saber porque bulas, trago comigo uma frase de um dos contos do livro “Nunca Digas Adeus ao Verão”, de João de Mancelos, editado pela Colibri. Esta: “É tão estranho quando uma pessoa morta nos amou mais do que todas as vivas”.

Edição
3833

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