A opinião de ...

A Sociedade XVIII – A Procissão

Às vezes acordávamos com a música da banda, ao longe.
Dias antes, os mordomos pediam ajuda para compor e ajeitar os andores. Limpavam-se e enfeitavam-se com flores, pediam-se pela aldeia a quem as tinha.
No dia da festa os mordomos andavam numa aflição, logo desde cedinho. Aguardavam a chegada da banda, que corria toda a aldeia, com música ligeira e ar descontraído, como que a dar as boas-vindas à Santa.
Em casa todos se compunham para ir à missa, fato domingueiro e tudo a condizer. Pelas ruas havia grupinhos já prontos, em conversa de ocasião. Outros estavam muito mais cedo no adro, à conversa. Pelo meio da manhã, à chegada do Padre, era a missa, que durava mais tempo. Mulheres à frente, homens atrás. Às vezes havia um Pregador. Mesmo sendo mais demorada, acabava antes do fim, pois ia haver procissão.
Em casa já estavam as melhores colchas à janela, à espera.
No adro, todos aguardavam. Os andores saíam, inclinados, nas portas estreitas e os voluntários, cumprindo promessas, já vestidos com as vestes vermelhas e os apoios na mão, traziam-nos para a rua. A banda estava à porta do adro. Um ou outro ensaiava. O mestre estava atento e sério. As conversas continuavam, mais baixas, mas beneficiando da ausência da cruz e do pálio com o Santíssimo.
De súbito surgia a cruz pela porta da Igreja e as conversas esmoreciam. Logo a seguir vinha o pálio e o padre, com o Santíssimo, bem embrulhado em sedas vermelhas.
Compunha-se a procissão, dava-se o sinal e a banda arrancava com aquela música, simultaneamente solene e lúgubre. Arrancava a procissão e todos seguiam atrás. Alguns atrasados surgiam apressados das esquinas, e outros esperavam à porta de casa para acompanhar o cortejo. Outros, mais velhos, à janela. Os mordomos seguiam ao lado, atentos ao desenrolar da procissão. Na Igreja, o tocar ritmado do sino anunciava o progresso da procissão, todos precisavam de saber que estava em curso. Uns, atrasados, colocavam à pressa as colchas, ainda não estendidas e outros ainda chamavam as crianças ou punham cadeiras à porta para os seus idosos entrevados.
A banda, de farda cinzenta, tocava, com o som a escorregar nas paredes das casas e, de quando em quando, havia um intervalo para aliviar os portadores dos andores, que depressa os apoiavam nos ganchos dos apoios. O cortejo parava todo, uns minutos. O silêncio era solene e só quebrado pela banda que, a precisar também de descanso, parava a música tristonha e soavam rufares suaves, em ritmo rápido e no entanto solene, muito solene, 2 ou 3 vezes repetidas, rápidas, entrecortadas por um bombo. Todos aproveitavam para olhar para o chão, já que a paisagem não mudava por aqueles breves minutos. Nisto, ao sinal do mestre da banda, reiniciava-se esta e o movimento sincronizado dos andores. Moviam-se a compasso, parecia que como um grupo de militares, com o andor a cambalear ao ritmo da música e dos passos. Os mais baixos, às vezes, tinham dificuldade em chegar com o ombro ao andor.
O que mais nos marcava era o silêncio, com tanta gente, o ritmo do cortejo, da música e dos passos dos voluntários. O adejar do andor e o som lúgubre da música. Os intervalos de tambor só aumentavam a tensão que se sentia. Aquele contido rufar de bombos não tem paralelo.
E, no entanto, tanta paz.

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