A opinião de ...

Do alto dos oitenta e tal ano

erante a irredutível resistência de Domingos Botelho em se valer das suas influências para livrar da forca o seu filho Simão, apenas um idoso e “venerando” familiar com 83 anos de idade o fez ceder – assim Camilo no-lo dá a conhecer no “Amor de Perdição”. É o momento em que esse familiar coloca aquele irascível pai perante a alternativa: ou ele de imediato intervém a favor do filho ou então, (enquanto “apontava ao pescoço uma navalha de barba”), com aquela idade e uma vida honrada e exemplar, não valeria a pena continuar a viver sob a desonra que iria cair sobre a família.
Com oitenta e tal anos, já se viveu muito; e decerto, na grande parte dos casos, continuará a viver-se mais.
Tendo em conta o percurso desde o gatinhar e os primeiros passos, tal como o balbucio e as primeiras palavras, até aos muitos anos de vida, o ser humano tem bastante que contar e assumir tanto o que fez considerado bem como o que fez considerado mal.

O Vicente, com oitenta e cinco anos, tendo cumprido uma comissão de serviço na guerra das Colónias, onde passou das boas, costuma, depois do almoço, descansar umas horas à conversa, no café lá do bairro, com três vizinhos amigalhaços desde o tempo de infância. Os quatro têm muitas histórias para contar, e várias delas curiosas e chocantes.
O Joaquim Manco, a rondar também os seus oitenta e tal, não chegou a ir à tropa. Também, coitado, com aquele defeito físico, ao qual se habituara, desde que um dia caiu de uma fraga e partiu uma perna, quando andava à amêndoa na ladeira do rio, mal seria se o tivessem obrigado a semelhante vida!
O Angélico e o Virgílio eram irmãos gémeos e tinham oitenta e quatro anos. Tanto um como o outro ficaram livres do serviço militar – o Angélico por ser objetor de consciência e o Virgílio por sofrer do pé chato. Contudo, obrigaram o lingrinhas do Celestino a partir para a guerra, donde veio meio raquítico e tuberculoso! Foi por pouco que não ficou por lá!
Todos levaram uma vida de trabalho, sob o rigor do clima, passaram fome e sede, e nunca se atreveram a ripostar contra quem, às vezes sem razão e com palavras insultuosas, lhes roubava o sossego e a dignidade. Tendo levado uma vida de trabalho e de sacrifício para seu benefício e da sua família, conseguiram resistir às contrariedades que lhes faziam frente e contribuíram, na medida em que puderam, para bem deste país e para o bem-estar de quem acham que lhes vai subtraindo algo do que lhes pertence.
Ora estes quatro amigos eram unânimes num mesmo assunto: depois de tantos anos a servir sem a devida recompensa, veem-se no fim da vida com uma chamada “reforma de miséria” que não chega para viverem condignamente. Para eles, como para muitos outros, alguém terá que providenciar para que ou as reformas aumentem ou que as suas necessidades sejam satisfeitas com o que recebem. E quem irá assumir essa responsabilidade? Porque ou isso ou o definhamento até ao fim da vida.
Eles, quando veem algumas discussões na Assembleia da República, ficam dececionados ao ouvirem tanta conversa – quantas vezes alterada – em detrimento de, serenamente, se convergir no sentido de acudir a quem precisa.
E, vistas bem as coisas, perante uma alternativa idêntica à que acima aquele familiar – tio-avô – colocou ao corregedor, não têm a certeza de que quem deve assumir essa responsabilidade irá também ceder.

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