A opinião de ...

Para além do luto

A pandemia e a guerra na Ucrânia vieram obrigar-nos a lidar quotidianamente com o tema da morte nestes últimos tempos.
Obviamente, a morte esteve sempre presente à nossa volta, já que a finitude é uma condição inexorável do ser humano, mas a consciência da mesma vai flutuando em função dos momentos da vida.
Assim, tendencialmente, os jovens sentem-se “imortais”, porque a morte parece-lhes longínqua e o futuro largo. Por sua vez, os adultos logram distrair-se do tema da morte, absorvidos pelo presente, vivendo um dia de cada vez. E os idosos rememoram a sua vida, encontrando consolo no passado e tratando, assim, de afastar a proximidade da morte.
Porém, a finitude e a posição perante a mesma definem as condições da nossa existência. Nessa medida, a morte faz parte da vida, sendo certo que a observação dos rituais fúnebres de cada povo diz muito sobre a sua cultura. E a verdade é que se podem observar diferenças substanciais entre as diversas culturas a este respeito.
Recentemente, tive ocasião de participar nas cerimónias fúnebres de um familiar e verifiquei que, no meio da dor da perda e da sensação de tristeza, há em muitas pessoas um desejo latente de poder olhar de outra forma para a partida dos entes queridos, com gratidão e esperança, para além dos pesados rituais tradicionais.
É como se uma intuição difusa da transcendência se começasse a insinuar no interior das pessoas e quisesse encontrar um modo de expressão, sem saber ainda como manifestar-se. Talvez esse seja o resultado do encontro de culturas que as migrações massivas e as viagens de turismo vieram produzir, cruzando mundividências? Poderá ser este momento histórico que potencia uma procura espiritual para além do horizonte conhecido, movida pela necessidade profunda de sentido? Ou será que o ser humano está a dar um passo adiante no seu processo de maturação espiritual, tomando consciência da centelha sagrada que habita no seu interior?
Qualquer que seja a resposta a estas perguntas, não há dúvida que o reconhecimento da transcendência para além da morte admite diferentes posturas que configuram o que se poderia chamar “os estados do sentido da vida”, a saber: a) A evidência indubitável (ainda que indemonstrável e intransmissível a outros) dada pela própria experiência interna; b) A mera crença dada pela educação ou ambiente social, como se fosse um dado indubitável da realidade; c) O desejo de ter a experiência ou a crença; d) A suspeita intelectual da possibilidade de sobrevivência para além da morte corporal, sem experiência, sem crença e sem o desejo de possuí-las1.
Obviamente, a estas quatro posturas poder-se-ia acrescentar uma quinta, que nega toda a possibilidade de transcendência, mas que não se opõe à ideia de continuidade histórica das diferentes gerações humanas.
Nesse sentido, a transcendência é um conceito aberto, sujeito a livre interpretação, que tanto admite a possibilidade da perpetuação das pessoas através da influência das suas ações ao longo do tempo - de que as obras de arte são um exemplo tangível, mas não único -, como a possibilidade de vida espiritual noutra dimensão temporal e espacial diferente da nossa.
Como nos diz Silo, “não imagines que estás encadeado a este tempo e a este espaço”. E «se não podes imaginar nem percecionar outro tempo e outro espaço, podes intuir um espaço e um tempo internos nos quais operam as experiências de outras “paisagens”».2
Assim sendo, se mais não for, esta abertura à transcendência facilita o processo de luto, mormente quando somos confrontados com a partida dos nossos entes queridos. Deste modo, talvez possamos sentir em nós a influência das ações da pessoa desaparecida ou a projeção do seu propósito para além do seu suporte material, compreendendo que a morte é sobretudo uma transformação, tanto para os que partem como para os que ficam.

1. Cfr. Oficina sobre o Sentido da Vida e a Transcendência. Parque de Estudo e Reflexão Minho, 20/11/2021.
2. Cfr. Silo. Comentários sobre a Mensagem, pág. 11. http://www.silo.net/es/message/commentaries

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3879

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