A opinião de ...

Caim/Cain

Os nomes não são mais do que meras convenções. Se dermos outro nome à flor a que chamamos rosa não perderá por isso o seu perfume diz a Julieta a Romeu no famoso romance de Shakespear de que fiz uma tradução livre. Apesar de tudo nomes há que, parecendo renegar a sua convencionalidade, como que ganham vida própria, agarraram-se à coisa nomeada acabando por perder toda a sua natureza de convenção e transformam-se no objeto que “nomeiam”. Nestes casos torna-se impossível separar o nome da coisa ou de a esta dar outro, que não poderá nunca ser se não uma outra etiqueta qualquer.
Caim (Cain em espanhol) é uma dessas palavras com um peso de milénios com que o Génesis bíblico o grudou, mesmo que o mesmo nome possa, igualmente, na vizinha província espanhola das Astúrias, significar uma pequena, limpa, exemplarmente ordenada aldeia, quase perdida num dos muitos vales dos Picos da Europa. A cena bíblica, para além de assinalar a disputa entre irmãos e, de certa forma, o antagonismo entre duas formas de vida que dominariam a vida na terra durante milhares de anos, marca, por essa mesma razão, o nascimento da cultura tal qual a conhecemos nos tempos modernos. O momento alegoricamente tratado no Livro Sagrado determina a ocasião em que o género humano se dividiu em duas atividades principais a pastorícia e a agricultura. Como esta última se baseia na propriedade, começou a exigir o seu registo para que se pudesse garantir e manter a sua posse e, posteriormente a sua transação ou herança. Foi assim que, por necessidade, apareceram os primeiros sinais cuneiformes que haveriam de dar origem à escrita mãe de toda a atividade cultural que se lhe seguiu.
Na margem esquerda do rio Cares, convidando as dezenas de caminhantes a internarem-se pelas veredas que ora o bordejam, ora penetram nas entranhas de onde se sai a espaços para testemunhar a titânica luta milenar entre os montes e o rio e em que este os rasga e que o apertam e confinam. Só esta caminhada seria suficiente para justificar a deslocação de várias centenas de quilómetros, mas muitos mais foram os atrativos dos Picos europeus onde, como muito bem avisou o Zé Magalhães, da JavSport, por aquelas paragens, a incerteza é a única certeza. De tal forma que com a mesma naturalidade com que Cain nos remete para as origens históricas da humanidade e da cultura conhecida, no coração de Valdeon que, igualmente, nos aponta, pela similitude fonética, para o bíblico Vale de Hebron onde Abraão ergueu um altar e onde enterrou Sara a sua mulher, também nos proporciona o anacronismo singular de num corredor de um pequeno hotel se poder assistir/ouvir diretamente pela propagação sonora direta a uma conversa que estava a ser estabelecida entre dois hóspedes que a começaram e mantiveram nos seus telemóveis, via satélite, passando pela operadora em Portugal.
Cain de Valdeon proporciona-nos uma sumptuosa beleza natural enquanto nos projeta para as mais profundas origens culturais, assegura-nos o acesso às modernas tecnologias de comunicações, impele-nos para um azul quase eterno do céu que, de repente, fica cinzento e molhado, nos obriga a mergulhar no ventre das montanhas que ali nos apertam e alguns poucos quilómetros acima nos oferecem a sensação de podermos voar se soubermos abrir os braços adequadamente mas, sobretudo, nos exige uma estreita simbiose com a natureza exuberante e esmagadora!

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